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Diversidade e inclusão

8 min de leitura

O risco de não avançar é retroceder

Está na hora de a conversa sobre diversidade e inclusão avançar. Sim, tivemos conquistas, mas precisamos de muito mais

Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

28 de Julho

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Artigo O risco de não avançar é retroceder

Quando olhamos para os números vindos de pesquisas sobre diversidade e inclusão, temos algo a comemorar. Avançamos nas discussões e avançamos em algumas práticas. Recrutamos mais pessoas de grupos sub-representados – mulheres, mulheres e homens negros, pessoas LGBTQIA+, etc –, criamos cargos de liderança para cuidar do assunto, desenhamos e executamos programas, desenvolvemos e conquistamos premiações. No entanto, para além dos aplausos e dos troféus, dos cases e indicadores, me pergunto: estamos realmente nos importando com essas pessoas? Sabemos como elas se sentem e como estão? Quem são elas? Quais são suas histórias subjetivas, para além do que representam?

Soubemos que Thaís, 37 anos, gerente de projetos numa multinacional e mãe de dois filhos, precisou abandonar uma reunião com a equipe, devido a uma crise de ansiedade, desencadeada depois que uma de suas crianças não parou de chorar durante toda a manhã?

Percebemos que a Cris, mulher trans com 33 anos, recém-contratada em uma agência de publicidade, está exausta de fazer trabalhos como freelancer após o expediente, pois durante a pandemia viu seu salário ser cortado pela metade?

Notamos que Marina, 43 anos, negra, gerente de TI em uma grande empresa, viu sua carga horária duplicar e sua produtividade despencar, porque precisou assumir todas as tarefas domésticas na casa, além da educação e do cuidado do filho com deficiência, grupo de risco?

Vimos que Marlene, 48 anos, negra, diarista, moradora da periferia, não pôde cuidar dos seus filhos — nem de sua casa, nem de sua mãe, parte do grupo de risco da covid-19 —, porque não teve o direito de decidir parar ou não de trabalhar na casa de outra família?

Procuramos nos informar e descobrir que a mãe de Marlene faleceu de covid-19, após a filha ser contaminada em uma das casas em que trabalha? Soubemos que a família dispensou Marlene dos serviços logo depois disso, e ela nem teve a chance de viver seu luto, porque mais uma vez precisou buscar emprego, já que não conseguiu acessar o auxílio emergencial?

Essas são as vidas que estão por trás dos gráficos e estatísticas que diariamente nos informam sobre a inclusão e a diversidade em nossos espaços de trabalho. Para além daquilo que representam — mulheres, pessoas transexuais, pessoas negras, pessoas com deficiência — cada pessoa carrega sua própria história. Portanto, pergunto: quando falamos em avanços, olhamos para números ou para essas pessoas e suas trajetórias?

Por ser quem sou e ocupar os lugares que ocupo, também sou atravessada por muitas dessas questões e histórias. Sou mulher, negra e de origem periférica. Estou líder de pessoas em uma empresa de tecnologia global. E todos os dias me questiono e me desafio a levar o tema da diversidade e da inclusão para um próximo nível. Não por conta das metas e métricas, mas porque isso é o certo e, sobretudo: isso é urgente.

Exclusão social e sobrevivência

O Índice Folha de Equilíbrio Racial (IFER) dá uma amostra da complexidade desse tema quando o assunto é a exclusão social enfrentada pela população negra. O IFER consegue fornecer uma medida quantitativa do desequilíbrio racial presente nas populações com alta escolaridade, maiores rendimentos e com maior longevidade.

Segundo resultados do estudo — com metodologia desenvolvida pelos economistas do Insper Sergio Firpo, Michael França e Alysson Portella — a distância entre a fatia de negros e brancos no grupo dos brasileiros 10% mais ricos deverá se tornar ainda maior nos próximos anos. Tudo isso apesar de as pessoas negras estarem se formando mais nas faculdades e entrando em maior número nas grandes empresas. Não é simples. Se mais pessoas negras estão inseridas em faculdades e em grandes empresas, por que a distância entre o sucesso financeiro de pessoas brancas e negras permanece?

Maior escolaridade não significa necessariamente mais oportunidades. A fórmula não funciona. É preciso olhar para a história completa, e entender os mecanismos da estrutura que constrói e perpetua essa desigualdade. Uma pessoa negra que termina a graduação potencialmente aumenta suas chances de mobilidade socioeconômica. Todavia, esbarra em limites menos comuns entre jovens brancos.

O nome da faculdade em que se formou e até seu endereço de residência são obstáculos, chamados de critérios na seleção em currículos. Além disso, mesmo quando dentro das empresas, essas pessoas não concorrem de igual para igual com as outras em ofertas de promoção. Elas podem dar tudo de si para uma nova vaga ou um novo cargo? Não, não podem. Não por não serem capazes, ou por não quererem se esforçar, mas porque a realidade fora do meio de trabalho não permite que assim seja.

As mulheres, por exemplo, durante a pandemia, estão acumulando ainda mais papéis e responsabilidades que historicamente vem assumindo sozinhas, mesmo quando tem companheiros. É o caso de Thaís, Marina e Marlene, cujas histórias ilustram este texto. É o caso de muitas outras mulheres cujas histórias não chegamos a conhecer.

“Mulheres são guerreiras!”, "Pessoas negras são fortes!”, “A vida ensinou cedo pessoas LGBTQIA+ a lutar.” Quantas vezes já ouvimos isso? Será que não há nada de errado com uma sociedade que nos obriga a sermos pessoas fortes, guerreiras, incansáveis e lutadoras? Estamos realmente incluídas se o ambiente testa constantemente a nossa pertença àquele espaço, o nosso merecimento e limita a expressão do nosso potencial? Ser guerreira, ser forte, saber lutar... essas não são escolhas, e sim imposições: são estratégias de sobrevivência.

Hora de avançarmos

Sendo assim, é hora de nos perguntarmos: o que realmente estamos transformando? Quem estamos incluindo, se em um ano de pandemia a taxa de ocupação de mulheres latino-americanas em ambientes de trabalho caiu 12%, segundo a Organização Internacional do Trabalho? Se somos, mesmo, todas iguais, ou estamos avançando nessa questão, como nos primeiros meses da pandemia mulheres negras registraram uma taxa de desemprego de 16,1%, uma porcentagem de 5% maior do que a encontrada entre mulheres brancas? Ainda mais importante: quais são as mudanças que ainda precisamos fazer?

Precisamos de mudanças que vão além do superficial, do temporário, do sazonal. Mudanças que garantam avanços consistentes, resistentes a cenários desafiadores. O certo é urgente e não podemos admitir retrocessos.

É hora de parar de gastar tempo com as discussões que questionam a real importância da diversidade ou qual percentual de lucro se ganha com equidade de gênero e racial. Basta perguntar se a meta do ano foi batida ou se nos igualamos à empresa concorrente. Precisamos sair da discussão errada e corrigir a bagunça que fizemos até aqui.

Não podemos celebrar números vazios. A pandemia é um marco para entender que o certo é certo. É uma época das urgências. Passamos do tempo de realizar algo porque é cool ou porque traz resultados. É hora de implementar mudanças porque isso é urgente, é necessário, é humano. Só assim, vamos firmar compromissos de longo prazo e qualificarmos nossos movimentos. Vamos focar no problema certo a resolver. Pessoas não são números, nem equações matemáticas que garantem um resultado positivo na linha final.

Para reter e transformar

A Google, em seu último relatório de Diversidade e Inclusão, falou sobre os avanços e bons números no recrutamento intencional de grupos sub-representados, mas colocou o foco em reconhecer uma grande falha: manter essas pessoas dentro da empresa. Há mais pessoas de grupos sub-representados saindo desses espaços que entrando neles. Isso fez a gigante da tecnologia desistir? Não. Fez com que ela triplicasse o investimento previsto para os próximos anos, a fim de garantir que isso não vai mais acontecer.

Entender do que se trata a diversidade e começar e celebrar as conquistas são os primeiros passos, importantes e justos. Entretanto, precisamos firmar nosso compromisso com a ação. Um agir constante, diante de novos cenários, de novos desafios, das ambiguidades e da complexidade que esse tema traz consigo.

Não há resposta simples ou solução fácil que caiba em um programa de recrutamento, em uma campanha de comunicação interna ou numa trilha de desenvolvimento. Esses processos, se não forem pensados, idealizados e postos em prática tendo em vista uma perspectiva de mudança estrutural, podem até se converter em bons dados para a estatística, mas não representarão uma mudança positiva nas histórias de pessoas como as que ilustram o início deste texto. As microrevoluções ao alcance das nossas canetas só acontecerão se acreditarmos que a Thaís, a Cris, a Marina e a Marlene e tantas outras merecem mais.

Resultados de curto prazo parecem satisfatórios, entretanto são marcos, e não linhas de chegada. Se não os encararmos dessa forma, vamos perder o que só se vê com a coragem de assumir nossa humanidade, nossa responsabilidade e o compromisso a longo prazo.

Já passa da hora de entendermos que, mais do que a linha de chegada, o que importa são as pessoas para quem estamos dando as nossas mãos no caminho. Porque uma sociedade mais justa, e menos desigual para todas as pessoas, não pode ficar presa em planos e promessas. Ela deve ser nossa ação, nosso imaginário e nossa utopia.

O escritor Eduardo Galeano, citando Fernando Birri, diz que a utopia — lugar perfeito e desejável — está no horizonte, mas sempre que avançamos em sua direção ela igualmente se afasta. É justamente isso que lhe confere serventia: ser o móvel dos nossos passos a cada dia. Não nos permitir parar de caminhar.

Não é sobre correr mais rápido e disparar na frente dos competidores nos primeiros metros. É sobre termos constância, fôlego, resistência, superarmos obstáculos e vencermos a nós mesmos. Porque não é um sprint, nunca foi. É uma maratona que só venceremos coletivamente.

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Colunista

Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

Grazi Mendes está como head of diversity, equity & inclusion na ThoughtWorks Brasil, consultoria global de tecnologia, é professora em programas de desenvolvimento de lideranças e cofundadora da Ponte, hub de diversidade e inclusão. Acumula cerca de 20 anos de experiência em gestão estratégica, branding, design estratégico, liderança e cultura, com atuação em empresas nacionais e multinacionais de segmentos diversos.

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