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Report especial

25 min de leitura

Descarbonizando até os setores mais resistentes

Reduzir emissões em setores “hard-to-abate” como o transporte de cargas e a produção industrial a altas temperaturas abrirá novas oportunidades estratégicas

Amory Lovins

08 de Outubro

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Artigo Descarbonizando até os setores  mais resistentes

Para evitar a mudança climática descontrolada, é preciso eliminar emissões globais de carbono até 2050. Embora boa parte do foco esteja nos grandes vilões – edifícios, automóveis –, mais de um terço das emissões vêm de meios de transporte pesado como caminhões e aviões, e da produção, a altas temperaturas, de materiais como aço e cimento. Não há como atingir a meta sem incluir essas indústrias. O problema é que a mitigação ali é sabidamente difícil. São setores “hard-to-abate”: resistem ferrenhamente à descarbonização que, para muitos de seus gestores, seria lenta, cara e sem lucro à vista.

A descarbonização, contudo, não só é viável como traria régias recompensas se fosse feita de maneira estratégica. Na década atual, uma abundância de novas tecnologias e técnicas financeiras, novos materiais, processos e modelos de negócio, ao lado de políticas inteligentes e investimentos agressivos, poderia revitalizar, remanejar ou suplantar alguns dos setores mais poderosos do mundo. Com isso, na década de 2030, o transporte rodoviário, o marítimo e a aviação estariam desassociados do clima. Aço, alumínio, cimento e plásticos poderiam assumir novas formas, ter seu uso reduzido e ser produzidos de novas maneiras, em lugares inimagináveis, com novos modelos de negócio.

Neste artigo, examino estratégias que poderiam ajudar a tornar isso tudo possível e, no processo, gerar trilhões de dólares. São abordagens distintas, mas com um elo comum: a energia de fontes renováveis, cada vez mais competitiva e abundante, está minando e suplantando combustíveis fósseis. As usinas termelétricas comuns em várias partes do mundo estão vendo sua receita cair e seus custos fixos por quilowatt-hora aumentar. O transporte pesado eletrificado e a produção industrial a altas temperaturas, abastecidos com fontes renováveis, também devem suplantar, desvalorizar e jogar para escanteio rivais movidos a combustíveis fósseis, tirando receita de velhas tecnologias para bancar sua própria expansão. As crescentes justificativas para geração e uso de eletricidade a partir de fontes renováveis vão se reforçar mutuamente, acelerando a derrocada de combustíveis fósseis e contribuindo para uma das maiores disrupções da história dos negócios. Exploraremos agora as cinco estratégias de inovação na gestão que vão acelerar a transformação. Várias valem para mais de um setor e podem ser ainda mais eficazes em combinações sinérgicas.

1. SUBSTITUIR

Escale rapidamente tecnologias verdes para superar rivais convencionais e suplantar tecnologias obsoletas. Veículos de carga pesados, especialmente caminhões de Classe 8 pela classificação americana, fazem em média apenas 2,5 quilômetros por litro, e emitem quase 4% do CO2 global – mais de metade do carbono emitido pelo transporte rodoviário pesado. Essa tecnologia suja vive sob constante ameaça da disrupção, como mostrou Elon Musk ao revelar, em 2017, o protótipo do Semi, o caminhão totalmente elétrico da Tesla. Criado para tirar da estrada carretas e semirreboques a diesel, o Semi faz o equivalente a 7,23 km/l se carregado com eletricidade renovável e produz zero emissões. A Tesla espera entregar as primeiras unidades no fim de 2021. Embora o Semi vá custar 50% mais do que um equivalente a diesel, a empresa afirma que esse adicional será recuperado em dois anos pela redução dos custos de operação e que o veículo terá garantia de 1,6 milhão de quilômetros rodados. E a Tesla não está só: apenas nos EUA, ao menos 14 fabricantes esperam estar produzindo caminhões elétricos pesados até 2023.

A McKinsey prevê que a demanda de caminhões elétricos na China, na Europa e nos EUA possa chegar a 11 milhões de unidades até 2030. Para uma prévia do futuro desse veículo, é só conferir a trajetória dos carros de passeio elétricos: com a queda no preço de baterias, baixos custos de manutenção, alto rendimento e mais autonomia, as vendas globais de carros elétricos subiram 43% em 2020, chegando a 4,2% de participação de mercado; já as vendas totais de automóveis caíram 14%. Minha expectativa é que vendas e preços de caminhões elétricos sigam essa mesma trajetória – e pelos mesmos fatores.

Isso tudo vai exigir uma vasta infraestrutura de recarga. Até que esteja instalada, o caminhão elétrico ficará restrito aos principais corredores de trânsito ou a operações com base fixa (ida e volta) – ambos mercados importantes. Em última análise, a capacidade do caminhão elétrico de desbancar o que sobrar da frota a diesel dependerá de uma infraestrutura distribuída por longas rotas irregulares. Embora o custo de instalá-la seja alto, a receita potencial também é. Postos de combustível terão interesse em instalar pontos de recarga para recuperar a receita perdida do diesel; concessionárias de energia terão incentivo para se aliar a (ou competir com) esses postos na instalação da infraestrutura. Uma nova fonte de receita para essas concessionárias seria a locação independente de baterias (o que teria o efeito secundário de ajudar a reduzir preços de caminhões elétricos, acelerando sua adoção).

A penetração do caminhão elétrico também terá o empurrão da “recarga inteligente” e de outras oportunidades de cortar custos e gerar receita com tecnologias de carregamento e armazenamento. Operadores de energia solar e eólica podem prever com exatidão a produção, informando quando a eletricidade tende a ser abundante e barata – e, portanto, quando carregar baterias de caminhões parados pode custar o mínimo e quando vender a eletricidade armazenada de volta à rede pode render o máximo. Com isso, o transportador teria como incluir a programação de recarga a variáveis a serem otimizadas. Em rotas longas, enquanto o motorista descansa o caminhão pode fazer dinheiro graças à combinação de baterias grandes e recarga rápida, garantindo a autonomia necessária para a jornada seguinte. Prova de conceito: para cada bateria de carro elétrico que gerencia, a integradora de sistemas europeia The Mobility House fatura € 1 mil (cerca de R$ 6,5 mil) ao ano com a troca de eletricidade e uma dezena de outros serviços entre a bateria e a rede.

Outros incentivos e estratégias econômicas inovadores no setor automotivo incluem os chamados “feebates” – taxas para carros que emitem mais, subsídios para os que emitem menos – hoje adotados em vários países. Além disso, a economia com combustível poderia ser usada para pagar o financiamento de caminhões elétricos, permitindo que transportadores autônomos com veículos a diesel, que transportam o grosso da carga nos EUA, renovem rapidamente essa frota ineficiente com modelos elétricos – em vez de esperar anos para o acesso a usados. Como a manutenção do elétrico é mais barata e o veículo pode durar muito mais do que caminhões a diesel, pode-se esperar que substituam cada vez mais os modelos a diesel – mais poluentes, mais caros e de vida mais curta.

2. TRANSFORMAR

Crie incentivos e modelos de negócio que premiem soluções com tecnologias revolucionárias para desbancar indústrias estabelecidas. Assim como o transporte rodoviário de carga, o setor de aviação, mais complexo e avesso a riscos, vai precisar de energia limpa e de inovações que promovam eficiência para reduzir emissões. Jatos que consomem de 65% a 80% menos combustível do que aviões atualmente em uso foram projetados há mais de uma década por organizações como Boeing, NASA e MIT – mas levarão a vida toda para sair do papel se a eficiência continuar subindo apenas 2% ao ano. Novos incentivos e modelos de negócio poderiam rapidamente levar a inovações já estabelecidas, mas subutilizadas, ao mercado – e com rapidez ainda maior se os últimos avanços em eficiência na aviação forem aplicados.

Por exemplo, o protótipo de 2020 do Celera 500L da Otto Aviation, um jatinho executivo de longo alcance e aerodinâmica superior, pode voar com vários combustíveis e transportar de seis a mais de 20 passageiros. A empresa não se limitou a usar um motor econômico em uma fuselagem convencional, criou o modelo do zero para uma eficiência sem precedentes. O resultado? Um avião com o dobro da autonomia, consumo de combustível oito vezes menor, um sexto do custo operacional e um quinto das emissões de carbono de um jato executivo de rapidez equiparável (mas menos espaçoso). É uma alternativa formidável e um candidato ideal a eletrificação – a maior inovação na aviação desde a década de 1950.

Os mesmos avanços em bateria e eficiência por trás da arrancada de carros de passeio e caminhões elétricos possibilitarão que os primeiros aviões elétricos para voos curtos de mais de 100 startups cheguem ao mercado nos próximos anos. Protótipos já estão sendo testados em voo e a United Airlines pretende comprar 200 aviões elétricos avaliados em US$ 1 bilhão . Embora a estreia dos elétricos na aviação vá se concentrar em voos de curta distância, voos mais longos podem se tornar viáveis em breve, com células de combustível de hidrogênio que certas empresas estão desenvolvendo.

Atualmente, o combustível é um custo determinante e volátil na aviação. Aviões supereficientes e elétricos eliminarão tanto o custo como a incerteza. Com um custo operacional bem inferior, frotas de aviões elétricos de menor porte e mais flexíveis podem permitir voos diretos frequentes, convenientes, limpos, silenciosos e econômicos. A capacidade de decolagem e aterrissagem verticais que certas startups estão desenvolvendo pode permitir que esses aviões simplesmente dispensem aeroportos. Logo, podemos esperar que aviões elétricos imponham um desafio a modelos de negócios tradicionais de companhias aéreas e de jatos executivos criados em torno de arquiteturas de rotas “hub-and-spoke”.

Embora investidores e certos compradores já estejam investindo em startups de aeronaves elétricas, compradores e fabricantes de aviões com problemas de caixa estão naturalmente cautelosos. Como incentivar novos saltos de eficiência – radicais e aparentemente de alto risco? Uma saída seria reduzir o risco de investimentos em desenvolvimento com esquemas de incentivos à compra. Há muito usados para gerar ganhos de eficiência em bens menores, como geladeiras, talvez funcionem também com aviões (ou caminhões, trens, navios). Em suma, grandes clientes se comprometem coletivamente a comprar um número “x” de unidades ao ano, durante “y” anos, ao preço “z” do primeiro fornecedor que consiga, digamos, quadruplicar a eficiência e, ao mesmo tempo, satisfazer todos os demais requisitos (o segundo colocado recebe uma fatia menor). Um prêmio dessa dimensão é um incentivo tanto para o desenvolvimento como para a compra de veículos inovadores, uma recompensa pela inovação ousada em vez do incrementalismo tímido .

3. REDESENHAR

Integre novas tecnologias, materiais e métodos de produção para levar disrupção a ecossistemas industriais tradicionais. Projetos de eficiência energética em geral buscam otimizar partes isoladas de dispositivos ou sistemas técnicos maiores, como um motor a diesel ou a jato. Mas otimizar a eficiência de veículos, edifícios e fábricas como sistemas completos pode dobrar ou triplicar a economia de energia a custo menor. Essa abordagem integradora, que combina tecnologias, materiais, métodos de produção e modelos de negócios novos, ajudará a romper o marasmo de ecossistemas industriais vastos, morosos e excessivamente maduros.

Vejamos o caso da fibra de carbono, que é muito mais leve e resistente do que o aço, mas também custa mais. Daria para concluir, portanto, que substituir uma tonelada ou mais de aço em um carro ou caminhão por fibra de carbono aumentaria o custo. Mas, com o design integrador, isso não acontece. A carroceria do elétrico i3 2013-22 da BMW é feita inteiramente de compósitos de fibra de carbono. Como isso reduz o peso, o i3 precisa de menos baterias. Além disso, seu processo de fabricação simplificado ao extremo requer dois terços menos de capital e espaço além de metade da água, da energia e do tempo. E não exige uma etapa convencional de estruturação da carroceria ou de pintura (as duas atividades mais trabalhosas e onerosas da tradicional montagem de automóveis). Com isso, o automóvel tem sua eficiência quadruplicada e dá lucro desde a primeira unidade produzida.

Outro exemplo é o caça radicalmente simplificado com cerca de 95% de fibra de carbono em sua composição, projetado pelo laboratório secreto da Lockheed Martin na década de 1990. Era um terço mais leve e dois terços mais barato do que o antecessor, que tinha 71% de metal. O engenheiro a cargo da iniciativa acabou projetando um utilitário esportivo de fibra de carbono que pesava metade do anterior e era quatro a seis vezes mais eficiente. Agora, a China planeja usar metais leves e fibra de carbono para reduzir em 80% o uso de aço em seus carros nesta década. Um típico automóvel americano poderia eliminar uma tonelada de ferro e aço – usando no lugar polímeros mais leves, mas de maior valor. Navios e trens de fibra de carbono também começam a ir além de protótipos e aplicações especiais e adentrar o grande mercado. Esses exemplos deixam entrever a substituição de veículos de aço para uso pesado por modelos mais leves, de menor consumo de combustível, mais facilmente eletrificáveis e de custo menor. E, já que a fibra de carbono não enferruja e dificilmente amassa ou se deforma, combiná-la com componentes eletrônicos e motores elétricos de alta confiabilidade também pode fazer veículos leves ou pesados durarem muito mais, favorecendo o leasing em detrimento da venda e a fabricação de menos veículos de maior valor.

Outros avanços em materiais, combinados com o design integrativo, são particularmente promissores para aeronaves, onde cada meio quilo eliminado pode significar uma economia de US$ 1 mil em combustível – e emissões associadas – durante a vida útil do avião. A Nasa e uma série de universidades apresentaram, por exemplo, uma estrutura de treliça de plástico para aeronaves. A estrutura é forte e resistente como a membrana de polímero flexível que a envolve, mas 98% mais leve do que uma estrutura de metal. Como a asa de um pássaro, sua forma pode ser ajustada em tempo real para reduzir o arrasto, aumentar a sustentação e poupar energia. Se o ar for retirado da treliça, a estrutura resistente resultante forma um “balão a vácuo” cuja flutuabilidade ajuda a compensar o peso de baterias de aviões elétricos – um feito promissor da engenharia, embora por ora apenas teórico.

A certa altura, carros elétricos ultraleves e supereficientes, e até aviões, poderiam ser alimentados parcial ou totalmente por energia solar. Ainda este ano, duas startups pretendem começar a vender hipercarros (“hypercars”) elétricos: veículos tão eficientes que praticamente não precisam ser ligados à tomada para recarga. O NeverCharge de compósitos da Aptera tem três rodas e menos resistência ao ar do que o retrovisor externo da caminhonete mais popular do mercado.

Estacionado ao ar livre, suas células solares podem alimentá-lo por até 16 mil quilômetros por ano. Sua autonomia diária (só solar) é de apenas 65 quilômetros, mas, se ligado à tomada, a bateria é recarregada para um alcance de até 1,6 mil quilômetros. Uma prova de que veículos supereficientes movidos a energia solar (ou por ela assistidos) podem fazer parte de uma matriz futura de transporte de carbono zero – e complementar a ampliação de uma infraestrutura de recarga menor.

Para surfar essa onda de mudanças, montadoras tradicionais devem investir em uma transformação tardia de ativos, tecnologias e cultura, vivendo no meio tempo da receita gerada pelos produtos obsoletos movidos a combustíveis fósseis que suas inovações pretendem desbancar. Poucas estão preparadas para o tsunami que se avizinha: estudo recente da KPMG sobre tendências em veículos elétricos concluiu que “velhos impérios podem ruir” na transição e que “mudanças estruturais pesadas” podem levar certas gigantes à derrocada. À espera do inevitável, várias montadoras já anunciaram que pretendem produzir seus últimos veículos com motor a combustão em uma ou duas décadas – no caso da Volvo, até 2030; no da General Motors, até 2035. Inovações em modelos de negócio respaldadas por um design integrador supereficiente abrem caminho para novas concorrentes.

4. MIGRAR

Deslocar indústrias de materiais básicos com produção mais barata viabilizada por energia limpa. Engatemos outra marcha agora (expressão que vai virar um anacronismo com a eletrificação eliminando o sistema de transmissão) para falar de inovações capazes de descarbonizar o calor industrial: a energia térmica necessária para produzir aço, cimento e outros produtos básicos. Altos-fornos siderúrgicos a carvão, fornos de cimento a carvão ou gás, fábricas de etileno e afins emitem um quarto do dióxido de carbono global – incluindo entre 7% e 8%, cada, para cimento e aço, 3% para produtos químicos (sobretudo fertilizantes e plásticos) e 1% para alumínio.

Essas emissões poderiam ser eliminadas pela geração de calor com eletricidade renovável ou a partir de hidrogênio, radiação infravermelha, micro-ondas ou plasmas gasosos superquentes (9% das necessidades de calor do mundo, incluindo o aquecimento de ambientes a baixas temperaturas e o aquecimento industrial a altas temperaturas, já são atendidas diretamente por fontes solares e geotérmicas ou por queima de biomassa). Certas instalações fabris já em uso migrarão para o calor renovável. Outras serão substituídas por fábricas erguidas em localidades com eletricidade renovável barata. Essa destruição criadora pode significar a baixa de trilhões de dólares em investimentos na indústria pesada movida a combustíveis fósseis e produzir trilhões de dólares em novos.

A produção de metais sempre foi atrelada a lugares específicos, onde existia minério de alta qualidade perto de energia barata. Da China da dinastia Song no século 12 à Inglaterra e à Alemanha da Revolução Industrial ao Meio-Oeste americano do século 20, a proximidade do carvão e do minério de ferro criou grandes complexos industriais de ferro e aço. Hoje, o minério costuma percorrer vastas distâncias para chegar onde é necessário; Austrália e Brasil, por exemplo, enviam minério de ferro para altos-fornos a carvão na China, que produz metade do aço mundial. O calor desse processo sujo dará lugar ao calor limpo gerado por energias renováveis – na própria China ou importadas. Ou, então, processos de calor limpo simplesmente migrarão para o exterior.

É por isso que a indústria siderúrgica sueca pretende construir uma usina movida a energia renovável em Gällivare, polo de mineração de ferro. Prevendo a demanda por “aço verde”, este ano a usina piloto da joint venture sueca Hybrit, em Luleå, passou a usar hidrogênio obtido de hidroeletricidade para transformar minério local em aço livre de CO2 – que a Volvo pretende começar a utilizar em peças de caminhão no próximo ano. A produção em escala industrial da rival H2GreenSteel deve começar em 2024, com a meta de produzir 5 milhões de toneladas de aço por ano já antes de 2030.

Combinar energias renováveis locais baratas com uma demanda crescente (e talvez um adicional ao preço) por aço verde poderia deslocar a produção não só para onde há abundância de minério de ferro, como Austrália, Índia e África do Sul, mas também para lugares com reservas modestas do minério, como norte da África e Chile – ou reserva nenhuma, como o Oriente Médio. Instalações movidas a energia solar nos Emirados Árabes Unidos já convertem bauxita da Guiné em alumínio verde para carros alemães.

A própria energia renovável pode ser exportada: a Arábia Saudita está erguendo uma combinação de usina solar e eólica de US$ 5 bilhões para produzir “hidrogênio verde” e, a partir de 2025, incorporá-lo em forma de amônia líquida (NH3) a um mercado projetado em US$ 700 bilhões ao ano. A BloombergNEF anunciou que, com o preço estimado da eletricidade solar para 2050 40% abaixo das projeções de 2019, o hidrogênio verde suplantará o hidrogênio do gás natural nesta década e passará a ser baratíssimo – ideal para uso em indústrias pesadas como a do aço.

A produção de cimento com combustíveis fósseis é outro alvo do calor industrial renovável. Hoje, mais da metade do cimento do mundo é fabricado na China, usando carvão para gerar calor. Em breve, ar superaquecido por energia solar poderia competir com carvão ou gás para esse uso (e teria de competir também com o hidrogênio verde). Para testar o conceito, a gigante Cemex e a Synhelion (spin-off da ETH Zurich) estão construindo um forno piloto de cimento aquecido por energia solar. E protótipos de concentradores da startup americana 247Solar (competindo com os da Heliogen) podem aquecer o ar a um custo capaz de competir com o do gás, e armazená-lo durante a noite para que possa fornecer calor ao processo com ou sem sol. Processos que precisam de temperaturas menos elevadas, como a maioria em fábricas de produtos químicos, já podem usar vapor solar ou bombas de calor elétricas a custo inferior ao da queima de gás natural.

Se operados conforme planejado por toda sua vida útil, os US$ 22 trilhões em ativos industriais, de eletricidade e transporte que mais emitem carbono no mundo estourariam, sozinhos, a cota total de carbono do planeta. E apenas um quarto desses ativos emitirá três quartos desse CO2 se não for aposentado logo. Mas se, hipoteticamente, todo o parque de usinas a carvão do mundo fosse substituído hoje por energias renováveis mais armazenamento, essa substituição poderia ter seu custo compensado em 24 meses e, em 2025, estar dando retorno de US$ 100 bilhões anuais – sem computar os benefícios colaterais para o clima e a saúde. Energia, transporte e atividades industriais estão todos cercados de ativos prestes a perder valor e de oportunidades para realinhar carteiras de ativos e remanejar o capital empenhado.

5. ALINHAR

Harmonizar incentivos de clientes e fornecedores, premiando projetos frugais de infraestrutura e a “servitização” de insumos básicos. Tanto fabricantes como clientes têm interesse em diminuir os custos e o impacto da produção de cimento, aço e outros materiais cuja fabricação consome muita energia. Eliminar desperdícios no sistema abre uma das maiores oportunidades de negócio do planeta – e mais de 99% dos materiais que o mundo extrai ou cultiva hoje são desperdiçados. As gigantescas indústrias que produzem e utilizam materiais básicos estão desenvolvendo substitutos de baixo ou zero carbono, e fabricantes estão migrando para fontes de calor para processos industriais mais eficientes, brandas ou limpas. Isso tudo é parte da solução. O mesmo ocorre com o incentivo à reutilização, à remanufatura e à reciclagem de materiais: uma economia mais circular poderia poupar até 37% do aço, 34% do cimento, 40% do alumínio e 56% de plásticos, reduzindo o CO2 associado a materiais em 40%.

Tornar edifícios duráveis em primeiro lugar, e em seguida mantê-los, pode ajudar; embora edificações chinesas erguidas nas últimas décadas com alto consumo de cimento tenham vida média de apenas 30 anos, edificações de concreto bem mantidas podem durar séculos. A cúpula do Panteão de Roma, maior estrutura de concreto não armado do mundo, tem quase 2 mil anos.

Medidas como essas para aumentar a produtividade de materiais são importantes, mas ignoram a vasta oportunidade que significaria reduzir a quantidade de cimento, aço e outros materiais estruturais em edificações. Análises confiáveis sugerem que seria possível economizar 11% do cimento e 9% do aço de forma rentável e prática com aplicação e projetos mais eficientes.

Esse espaço financeiro inexplorado, creio eu, traz a promessa de redefinir ou deslocar grande parte da indústria atual de extração e manufatura de materiais. Muitas empresas cujo negócio depende da venda de toneladas, e não de resultados, precisam transpor esse abismo – para não ser tragadas por ele.

Desenho frugal

Eliminar instâncias de pequenos desperdícios na complexa cadeia de valor da construção pode, sem dúvida, poupar gigatoneladas de materiais a cada ano. Isso posto, projetos inovadores que garantam a mesma integridade estrutural de prédios com menos material teriam o poder de poupar um volume no mínimo igual de material e de reduzir pela metade o gasto com aço e concreto, de forma rentável e sem comprometer a integridade da obra.

Quer alguns exemplos? Pontes suspensas com uma única torre e coberturas de arenas esportivas com grandes vãos formados por cabos tensionados podem pesar de 80% a 90% menos do que estruturas tradicionais. A estrutura massiva de pontes de concreto convencionais serve principalmente para suportar seu próprio peso, mas a impressão 3D pode fazer pontes de alta força e leveza, sustentadas por uma miríade de “ramos” de aparência delicada, de forma que a estrutura atenda principalmente o transporte da carga.

Em um edifício típico de altura média ou elevada, lajes respondem por cerca de metade do peso total, enquanto vigas pesadas de concreto e aço, colunas e fundações para suportar todo esse peso compõem boa parte do restante. Mas, uma placa delgada e reforçada com fibra de carbono dobrada de modo a formar uma estrutura como a do papelão ondulado fica tão rígida e robusta quanto uma placa sólida seis vezes mais espessa e quatro vezes mais pesada.

Servitização

O foco em aumentar a produtividade de materiais permite um novo modelo de negócio para fabricantes de cimento e aço: em vez de vender por tonelada, arrendar os serviços estruturais que esses materiais prestam. Quando fornecer uma tonelada de cimento vira um custo em um modelo de serviço, em vez de uma fonte de receita de vendas, quanto menos toneladas forem necessárias para prestar o mesmo ou um melhor serviço, maior será a economia para o fornecedor e para o cliente. Para o fornecedor, há a vantagem de receber um fluxo constante de pagamentos – em vez de pagamentos esporádicos que flutuam de acordo com a volatilidade de preços de commodities. O que se quer é o uso, o resultado – não a coisa em si. Vender serviços derivados de produtos em vez do produto propriamente dito – o que lá em 2005 os gurus do lean Jim Womack e Dan Jones batizaram de “economia de soluções” – hoje é chamado de servitizar ou servitização pelo Fórum Econômico Mundial. Esse modelo se alastrou para várias áreas: controle da temperatura em ambientes, iluminação, elevadores e coberturas, mídia digital, pallets, pneus de caminhão e mobilidade pessoal. Por que não a construção civil, também? Por exemplo, uma empresa de cimento ou aço – ou, idealmente, ambas – poderia formar uma aliança para oferecer “serviços de ponte”, que projetaria uma ponte avançada usando uma fração dos materiais típicos, remuneraria engenheiros estruturais por essa elegante frugalidade, cuidaria da construção e da manutenção esmeradas e receberia pelo tráfego que a ponte absorve com segurança – e não pelo ativo físico ou a matéria-prima.

Apesar do vasto potencial de lucro trazido pela servitização de indústrias de materiais de construção, há obstáculos imensos – e o principal deles é o fato de que esses setores são altamente avessos ao risco e à inovação. Além disso, a maioria dos clientes não exige nem quer pagar pela eficiência de materiais – e, aliás, tolera ou até aplaude enormes margens de sobreprojeto. O progresso vai depender do esforço de engenheiros civis e estruturais de alto calibre e reputação que pensem de forma distinta e prefiram o rigor destemido à timidez do conformismo. Provedores de serviços estruturais que se aliarem logo cedo a essa nata de engenheiros, premiarem seus resultados, ajudarem a ampliar e a aplicar seu talento e a montar uma aliança de fornecedores que ergam edifícios melhores e mais baratos podem superar rivais que se conformam com projetos inferiores e negócios comoditizados.

ESSAS CINCO INOVAÇÕES ESTRATÉGICAS dependem de novos modelos de negócio e produtos financeiros que acelerem a aposentadoria de ativos industriais sujos, banquem sua substituição por versões limpas e acelerem a fuga de capitais de ativos e setores obsoletos para outros, mais vantajosos.

Para isso é preciso investir na eficiência da energia e de materiais – sempre que isso custar menos do que a ineficiência; recompensar concessionárias de serviços públicos por reduzir a conta de luz em vez de vender energia; premiar designers pelas economias que geram; priorizar a eliminação de barreiras regulatórias, não só a precificação correta da energia; e redirecionar políticas públicas do setor privado para possibilitar o novo, em vez de proteger o velho.

Até no curto prazo, a fuga de capitais de combustíveis fósseis para energias renováveis e eficiência está acelerando. No ano passado, apesar da pandemia, o crescimento de energias renováveis acelerou 45% – rapidez suficiente para atender a todo o crescimento futuro da demanda. Isso desencadeou uma debandada de capital de combustíveis fósseis para substitutos em rápido crescimento.

Minhas cinco estratégias poderiam acelerar ainda mais esse ritmo. Transformar o lento declive de combustíveis fósseis em uma monumental avalanche é uma meta digna para um futuro que faça sentido, gere lucro e crie um mundo mais rico, mais justo, mais ameno e mais seguro – e sobre o qual valha a pena ter esperança.

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Uma tropicalização, por Carlos de Mathias Martins

Das cinco estratégias elencadas por Amory Lovins, acredito que apenas duas delas – substituir e migrar – teriam impacto relevante no ambiente corporativo brasileiro. Porém, no contexto da descarbonização dos setores mais resistentes, a estratégia de substituir talvez não funcione também.

Em curto e médio prazos, a eletrificação do setor de transporte pesado do País não faz sentido ambiental. Os bicombustíveis nacionais são produzidos com baixa intensidade de carbono ante as métricas utilizadas no programa brasileiro Renovabio e no Low Carbon Fuel Standard da Califórnia.

Adicionalmente, a intensidade de carbono de veículos elétricos ainda é relativamente alta devido principalmente às emissões de gases de efeito estufa associadas à produção de baterias. O Brasil já tem uma solução de baixo carbono bastante competitiva para o setor de transporte, situação que deve perdurar além do horizonte temporal de 2030 proposto por Lovins. Há que se considerar ainda o fato de que o Brasil tem uma lei proibindo o autoatendimento em postos de gasolina. Qualquer estratégia de descarbonização a ser implementada no País, incluindo iniciativas que envolvam modernidades como as estações de recarga para veículos elétricos, terá de lidar com isso, e com o poder constituído da vetocracia brasileira.

Com relação à estratégia de migrar, o Brasil será muito beneficiado caso as nações industrializadas aceitem reorganizar e realocar as cadeias produtivas globais no contexto da descarbonização das indústrias de base. O Brasil tem o minério de ferro, as mineradoras, as siderúrgicas, os biocombustíveis e baixa intensidade de carbono na geração de eletricidade. Tal como defende Lovins, não faz sentido produzir ferro gusa no Brasil e transportá-lo para o outro lado do mundo em navios que queimam bunker marítimo – o mais poluente dos combustíveis líquidos – até uma fábrica de turbinas eólicas. Fora o fato de que, no meio dessa cadeia produtiva existe uma indústria siderúrgica asiática que queima carvão mineral – o mais poluente dos combustíveis fósseis. É um verdadeiro disparate. Mas, parafraseando Mané Garrincha, para que a estratégia de migração funcione, ainda falta combinar com os chineses.

Carlos de Mathias Martins é engenheiro financista e investidor em cleantechs.



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Autoria

Amory Lovins

é cofundador e presidente emérito do think tank Rocky MountainInstitute (RMI) e professor-adjunto em Stanford. Ele aconselha grandes corporações e governos de todo o mundo em questões energéticas.

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