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Direito Digital

12 min de leitura

Direito e tecnologia: a busca por soluções contemporâneas

O Direito tem se dedicado a analisar sob a perspectiva da sua intersecção com a tecnologia, desde a construção de regras legais adequadas aos modelos de negócio diretamente relacionados à tecnologia até a sua interpretação pelo Poder Judiciário brasileiro

André Giacchetta

10 de Dezembro

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Artigo Direito e tecnologia: a busca por soluções contemporâneas

O estudo do Direito, como ciência humana, sempre esteve intimamente ligado a ideia de necessidade do estabelecimento de regras de convivência entre os seres humanos, visando a paz e a harmonia entre cidadãos de uma mesma localidade (uma cidade, um Estado ou mesmo uma nação), com a criação de regras (leis) impregnadas pelos valores morais, éticos, políticos, socioeconômicos e culturais da sociedade consentâneos com o momento de sua edição.

Naturalmente, a alteração dos valores da sociedade sempre trouxe desafios árduos na interpretação e aplicação contemporânea das regras legais, com importante destaque para os reflexos da evolução tecnológica na concepção, interpretação e aplicação do Direito.

Um pequeno exemplo disso é o conceito do direito à intimidade e à vida privada, que aparecem pela primeira vez como direito fundamental na Constituição Federal de 1988, pelo qual todos os brasileiros poderiam se opor à divulgação de fatos de sua vida privada, sem o seu consentimento, via uma medida judicial. Foi assim que, inclusive, muitas biografias de pessoas públicas tiveram o seu lançamento ou comercialização interrompidos.

Passados 30 anos da promulgação da Constituição Federal, vivemos em uma sociedade absolutamente distinta daquela do final da década de 80, especialmente no que diz respeito à dinâmica das relações interpessoais, com prevalência da renúncia, deliberada, da intimidade e da vida privada por seus próprios titulares (nós), com a exposição frenética de nossos hábitos, de nossas vontades, de nosso ser.

Apesar da mutação dos valores da sociedade, a garantia constitucional à intimidade e à vida privada permaneceram inalteradas, sendo necessário o desenvolvimento de uma interpretação harmônica com os valores da sociedade contemporânea, sob pena de uma deficiente aplicação da garantia constitucional, frustrando a pacificação de interesses muitas vezes antagônicos.

O Surgimento do “Direito Digital”

Particularmente interessante para este artigo, é a partir do final da década de 90 que se começam a cunhar expressões como “Direito Eletrônico”, “Cyberdireito”, “Direito do Espaço Virtual”, sendo a mais conhecida delas o “Direito Digital”. Essas expressões, mais do que uma tentativa de estabelecimento de novos ramos do Direito, buscavam correlacionar o estudo do Direito e a evolução tecnológica que o afetava de maneira profunda e determinante.

Por isso que, atualmente, sob a denominação de “Direito Digital”, tem-se uma grande variedade de temas sobre os quais o Direito tem se dedicado a analisar sob a perspectiva da sua intersecção com a tecnologia, desde a construção de regras legais adequadas aos modelos de negócio diretamente relacionados à tecnologia até a sua interpretação pelo Poder Judiciário brasileiro.

Recentemente, no julgamento da inconstitucionalidade de leis das cidades de São Paulo e Fortaleza que proibiam a oferta de serviços dos aplicativos de mobilidade urbana, o Ministro Luís Roberto Barroso disse claramente que Supremo Tribunal Federal deve estar preparado para enfrentar os novos desafios trazidos pela disrupção de modelos tradicionais de negócios, mas sem se afastar dos princípios constitucionais da livre iniciativa, da inovação e da liberdade econômica, com a mínima interferência estatal:

“    8.    A nova revolução é a Revolução Digital, que incorporou a mudança da tecnologia mecânica e eletrônica analógica para a eletrônica digital. A nova tecnologia permitiu a massificação do computador, do telefone celular digital e, conectando bilhões de pessoas em todo o mundo, a internet. Vivemos a era da informação e do acesso quase ilimitado ao conhecimento.

9.     A maneira como se realiza uma pesquisa, se fazem compras, se chama um táxi, reserva-se um vôo ou ouve-se música, para citar alguns exemplos, foi inteiramente revolucionada. Nós vivemos sob a égide de um novo vocabulário, uma nova semântica e uma nova gramática. A linguagem dos nossos dias inclui um conjunto de termos recém-incorporados, sem os quais, no entanto, já não saberíamos viver:

10.     Google, Whatsapp, Waze, Spotify, Youtube, Windows, Dropbox, Skype, I-tunes, I-phone, Facetime, Facebook, Twitter, Instagram, Amazon, Google maps, Google translator, Netflix. Para citar apenas os que eu conheço de conhecimento próprio. Os solteiros ainda têm o Tinder. Mas eu já estou fora dessa.

11.     A maior parte dos processos no Supremo Tribunal Federal, hoje, é eletrônica. O interessado faz o upload da sua petição onde estiver. E eu decido acessando o sistema de onde estiver, e depois assino eletronicamente por meio de um app no meu celular, seja de Brasília, de Londres ou de Vassouras.

12.     Em outra época, as maiores empresas do mundo eram as companhias petrolíferas ou as fabricantes de automóveis ou de utilidades. Hoje, as cinco empresas mais valiosas são Apple, Amazon, Microsoft, Google e Facebook. Tecnologia, conhecimento, propriedade intelectual. Inovação e avanços tecnológicos constroem esse admirável mundo novo da biotecnologia, da inteligência artificial, da robótica, da impressão em 3-D, da nanotecnologia e da computação quântica. O futuro é imprevisível e assustador, em meio a profecias que preveem a própria perda da primazia do homo sapiens, tal como o conhecemos.

13.     Não há setor da economia tradicional que não tenha sido afetado. Está todo mundo atrás de novos modelos de negócio e, como bússola desse caminho, busca-se também uma nova ética, que consiga combinar liberdade, privacidade, veracidade, competição leal, proteção contra hackers, contra a criminalidade online e outras vicissitudes.

14.     Diversas funções, ofícios e equipamentos passam da essencialidade ao desuso. As cadeiras vazias dos taquígrafos no centro do plenário do STF indicam essa realidade. Aprender datilografia, ouvir uma fita cassete, gravar um videoteipe ou mesmo aguardar o sinal de fax são exemplos de ações que fizeram parte de nosso cotidiano, mas que hoje precisam de legendas explicativas para gerações mais novas.

15.     Em realidade, essa “destruição criativa” designada por Schumpeter, própria dos ciclos de desenvolvimento capitalista, não é uma novidade. A expressão inovação foi, inclusive, adjetivada de “disruptiva”, para designar as ideias capazes de enfraquecer ou substituir indústrias, empresas ou produtos estabelecidos no mercado.

16.     Nesse cenário, é fácil perceber a origem dos conflitos que têm surgido entre os detentores de tecnologias disruptivas e os agentes tradicionais do mercado: players estabelecidos veem seus mercados, por vezes monopolistas, ameaçados por atores que aproveitam as lacunas de regulamentação de novas atividades para a obtenção de vantagens competitivas, sejam elas regulatórias ou tributárias.

⇒     É o caso, por exemplo, das disputas envolvendo o WhatsApp e as concessionárias de telefonia; Netflix e empresas de televisão a cabo; Airbnb e redes de hotéis; e, como retratado neste recurso extraordinário, entre o serviço de transporte individual por aplicativo e os táxis.

17.     Assim como não se ouve música como se ouvia há 10 ou 15 anos, a forma como as pessoas se comunicam, leem livros, assistem filmes, se hospedam ou se locomovem pelas cidades não é mais aquela de alguns anos atrás. Trata-se de um dado de realidade. É inócuo tentar proibir a inovação ou buscar reestabelecer o status quo do mercado.

18.     Assim como a destruição de máquinas de tear, no início do século XIX, por trabalhadores ingleses do ramo tecelagem não conseguiu frear a Revolução Industrial, o neoludismo dos dias atuais tampouco colocará fim à Revolução Tecnológica. O desafio do Estado está, portanto, em como acomodar a inovação em mercados preexistentes. A proibição da atividade, na tentativa de contenção do processo de mudança, evidentemente não é um caminho. É como tentar aparar vento com as mãos.”

A tecnologia reduziu a assimetria de informação entre consumidores e fornecedores de maneira incomparável, cujos avanços possibilitaram o surgimento da denominada “economia compartilhada”, cujas características foram indicadas pelo Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, ao citar o professor Arun Sundararajan, da New York University’s Stern School of Business:

“1. Amplamente baseada no Mercado: a economia compartilhada cria mercados que permitem a troca de bens e o surgimento de novos serviços, resultando em níveis potencialmente mais altos de atividade econômica.

2. Capital de alto impacto: a economia compartilhada abre novas oportunidades para que tudo, desde bens e habilidades até tempo e dinheiro, seja utilizado a níveis próximos de sua capacidade máxima.

3. ‘Redes’ baseadas em multidões em vez de instituições centralizadas ou ‘hierarquias’: a oferta de capital e mão-de-obra deriva de multidões descentralizadas de indivíduos em vez de agregados de empresas ou Estados; trocas futuras podem ser mediadas por ambientes de mercado distribuídos baseados em multidões em vez de terceiros centralizados.

4. Linhas tênues entre o pessoal e o professional: a oferta de mão-de-obra e serviços frequentemente comercializa e dimensiona atividades peer-to-peer como dar uma carona a alguém ou emprestar dinheiro a alguém, atividades essas que costumavam ser consideradas ‘pessoais.’

5. Linhas tênues entre o trabalho com vínculo de emprego e o casual, entre o emprego independente e o dependente, entre o trabalho e o lazer: muitos trabalhos tradicionalmente de tempo integral são suplantados por trabalhos contratados que apresentam diversos níveis de comprometimento de tempo, granularidade, dependência econômica e empreendedorismo.”

(SUNDARARAJAN, Arun. The Sharing Economy. Cambridge: The MIT Press, 2016. p. 27.)”

O desafio na criação de regras legais que incentivem a inovação tecnológica

Das lições acima dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, pode-se extrair que o papel do Estado, e especialmente do Direito, diante da evolução tecnológica, é o de buscar a criação de um ambiente de regras claras, não proibitivas, que tragam segurança às relações, pessoais e negociais, e estejam em harmonia com os valores atuais da sociedade brasileira.

E assim foi, por exemplo, com o tema da responsabilidade civil dos provedores de serviços na internet até a edição, em 2014, do Marco Civil da Internet.

O tema da responsabilização civil dos provedores de aplicação de internet pelo conteúdo gerado e compartilhado por seus usuários continua – e penso que continuará – atual diante da evolução e do dinamismo das soluções tecnológicas utilizadas por essas empresas e também como decorrência da própria transformação do comportamento dos usuários na forma de se relacionarem, de influenciarem as suas decisões e de tornarem a sua realidade verdadeira para todos aqueles que os circundam.

Igualmente contemporânea é a discussão sobre qual deve ser o papel dos provedores de aplicação de internet na repressão à utilização dos seus serviços para a disseminação de conteúdo sabidamente falso ou inverídico, com aparência de conteúdo jornalístico, a fim de trazer alguma credibilidade, e com a finalidade de influenciar decisões a serem tomadas por usuários comuns em temas corriqueiros ou relevantes, como a escolha de partidos políticos ou candidatos a cargos públicos.

Consequentemente, a intersecção desses dois temas – da responsabilidade civil dos provedores de aplicação de internet pelo conteúdo gerado pelos seus usuários e o papel que deve ser por eles desempenhado para a mitigação da disseminação de conteúdo que vem sendo denominado de fake news - trouxe ao centro do debate a reflexão proposta neste artigo: como harmonizar a atuação dos provedores de aplicação de internet para evitar o uso abusivo e desvirtuado de suas plataformas e, ao mesmo tempo, garantir que a sua eventual intervenção não viole garantias mínimas do estado democrático de Direito?

A relevância ainda é evidenciada pelo fato de, atualmente, existirem três temas reconhecidos como de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, relativamente à responsabilidade civil dos provedores de aplicação de internet pelo conteúdo gerado por seus usuários, antes da entrada em vigor do Marco Civil da Internet, em 2014, após a sua entrada em vigor e também sob a perspectiva do direito ao esquecimento.

É importante destacar que o Marco Civil da Internet, após longo e intenso debate, optou expressamente por privilegiar, prima facie, a liberdade de expressão e de informação comparativamente a eventuais alegações de violação dos direitos da personalidade, na medida em que o seu artigo 19, caput e § 1º, estabelecem que os provedores de aplicação de internet somente estarão obrigados, sob pena de responsabilização civil, a remover o conteúdo dos seus usuários após ordem judicial específica, que reconheça a existência de indícios de ilicitude na conduta do usuário.

De outro lado, diferentemente do que incorretamente se tem afirmado, o Marco Civil da Internet não veda a atuação espontânea dos provedores de aplicação de internet no que diz respeito à remoção de conteúdo de seus usuários, quando verificar, de acordo com os critérios e parâmetros estabelecidos em suas políticas e termos de uso – que são o contrato celebrado entre usuários e provedores - a violação das regras estabelecidas para o uso do serviço.

Esta diferenciação entre a obrigação de remoção mediante ordem judicial e a possibilidade de remoção sem ordem judicial é crucial para se rumar em busca de um ponto de equilíbrio na atuação dos provedores de aplicação de internet, bem como na definição das situações na quais deverá ser eventualmente responsabilizado pelo conteúdo disseminado por seus usuários, especialmente quando se tratar das chamadas fake news, cuja aferição da sua veracidade ou não, a fim de criar a obrigação de remoção pelos provedores, antecipo, cabe exclusivamente ao Poder Judiciário.

De maneira indubitável, a discussão a respeito da atuação dos provedores e de sua responsabilização é essencial no atual contexto político, em que a utilização dos serviços oferecidos pelos provedores de aplicação de internet será massificada e, consequentemente, o volume de informações que circulará nos computadores e aparelhos celulares e dispositivos móveis no Brasil será incomparável a outros pleitos eleitorais.

Outro tema de impacto e aplicação transversal, a todas às indústrias, diz respeito ao tratamento de dados pessoais, que teve sua primeira regulamentação pela promulgação a Lei 13709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que, dentre outras disposições, regulou a utilização dos dados pessoais, firmando princípios importantes para o tratamento dos dados pessoais e, em especial, fixando definições legais (sobre o que é tratamento de dados pessoais, as hipóteses de responsabilidade civil em caso de uso não autorizado), bem como as bases legais para o tratamento dos dados pessoais (dentre elas o consentimento).

Além dessas, há outros inúmeros temas que o Direito precisa endereçar soluções que favoreçam o desenvolvimento tecnológico e a inovação, como a tributação da economia digital ou de compartilhamento, os limites de uso de tecnologias de reconhecimento facial e biometria pela administração pública, sob a perspectiva de relações pessoais e negociais transnacionais, mas com harmonia com o regramento legal local.

É necessária uma releitura das regras legais existentes com a lente da modernidade, da tecnologia e do desenvolvimento, rompendo velhas amarras protecionistas em excesso, sob pena do desestímulo da inovação, como motor de propulsão do futuro.

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Autoria

André Giacchetta

Sócio da área de Tecnologia de Pinheiro Neto Advogados

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