fb

5 min de leitura

IA human-centric – princípios e desafios

Os riscos de uma inteligência artificial cega aos ideais humanos são potencialmente maiores do que os benefícios. Mas tudo depende de como vamos segurar essa rosa

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

09 de Novembro

Compartilhar:
Artigo IA human-centric – princípios e desafios

Contam que o velho oferecia rosas no parque. Sujeito de olhar castanho e fatiota alegre, de bengala em pulso. No que veio ter com ele aquele par de gêmeas, de 8 anos ou mais. O moço que habitava naquele corpo curvado pela idade sorriu ao oferecer duas rosas. Porém só uma delas aceitou, dizendo: “As rosas são tão lindas, vê?” O ancião, sem conter a surpresa, perguntou àquela que recusara a flor, qual a razão de tê-lo feito. A resposta veio curta: “Ela tem espinhos!”

Diante dos avanços da inteligência artificial (IA), algo semelhante acontece. Há o grupo dos otimistas que enxerga tudo cor-de-rosa, e há os que temem os espinhos. As duas perspectivas travam um duelo – ainda que desequilibrado, pendendo para os otimistas – para julgar se a IA trará um grande benefício ou uma assustadora ameaça para o futuro do bem-estar social.

FLOR E ESPINHO

Como a rosa oferecida às gêmeas, tendo a ver a IA na verdade como as duas coisas em uma só. Enquanto promete contribuir com aumento da eficiência e da conveniência para os indivíduos e para a sociedade, também possui potencial para promover disfunções profundas para o bom funcionamento social.

É entusiasmante, entretanto, observar a crescente manifestação em favor da reconciliação dos valores e princípios humanos no desenvolvimento e uso de inteligência artificial, como forma de garantir os benefícios e mitigar os riscos. Entre tantas iniciativas com esta orientação, vale destacar quatro delas:

O que se observa em tais iniciativas é o resgate de ideais humanistas a partir da reflexão crítica sobre o avanço da IA.

Alguém eventualmente poderia perguntar: “Mas se o foco dessas manifestações é mitigar os riscos de uma IA cega aos ideais humanos, então os riscos não são maiores do que os benefícios?” A resposta, metaforicamente, é: depende de como você segura a rosa.

FILOSOFIA-BASE

Não é a IA, por si só, que pode nos ferir. O que pode nos ferir é o modo com o qual a desenvolvemos e a aplicamos. Não é uma entidade que surge espontaneamente, de modo independente e com intenções próprias. Trata-se de um conjunto de algoritmos criado, mantido, aprimorado e usado por nós, humanos.

Tais inquietações são o tema central da human-centric AI, que quer definir princípios para a pesquisa e desenvolvimento desSa tecnologia. O núcleo desses princípios abriga considerações sociais inadiáveis.

A filosofia-base do tema engloba ao menos três valores de interesse geral:

  • Dignidade – uma sociedade que não seja dependente da IA e que esteja segura de que essa tecnologia não será usada para controlar nossos comportamentos;
  • Diversidade e inclusão – uma sociedade que não encontre na IA vieses que desrespeitem ou ajuízem contra as diversas variações ou preferências humanas;
  • Sustentabilidade – o uso da IA para criar novos negócios e soluções, reduzir disparidades sociais, e possibilitar à sociedade meios para mitigar questões ambientais.

É com base nesses valores que são sugeridas orientações comprometidas com essa filosofia. Entre eles, destaco:

  • Garantia dos direitos humanos fundamentais.
  • Esclarecimento educativo das peculiaridades da IA.
  • Privacidade de dados.
  • Gerenciamento da segurança cibernética.
  • Fair competition (competição justa).
  • Responsabilidade e transparência.
  • Inovação colaborativa.

Quando analiso as bases filosóficas que sustentam os princípios diretivos para a pesquisa e o desenvolvimento da IA, com este foco human-centric, não há como evitar a celebração. A lucidez destas considerações é espetacular.

GARANTIAS

Contudo, imediatamente, levanto uma questão: como poderemos garantir o cumprimento dessas diretrizes? De certo, a regulamentação é fundamental e conferirá sanções às corporações ou aos indivíduos que a desrespeite. Tudo bem. É um bom começo, porém estamos falando de AI. A coisa me parece bem mais complicada.

Vejam: inteligência artificial, no estágio em que a conhecemos, é um recurso que vai além da simples automação de funções repetitivas. As técnicas de machine learning (ML), capazes de treinar os modelos para que estes incrementem sua eficiência continuamente, já é suficiente para redobrar nossa atenção. O que impediria aquele colaborador daquela grande empresa de desenvolver um programa de AI, com técnicas de ML, que não observasse os princípios human-centric?

O ponto é que a governança de toda esSa disciplina não é apenas responsabilidade do Estado. É preciso que as corporações estejam imbuídas de gerir o uso da IA em suas iniciativas. Acrescente-se a isto a necessidade de compreender e adaptar a tecnologia às orientações dos manifestos em favor do humanismo digital.

QUESTÕES PARA AS CORPORAÇÕES

Proponho as seguintes questões:

  • Como garantir que as inovações baseadas em IA abarquem os direitos humanos fundamentais? Como automatizar a análise do código para garantir tal objetivo?
  • De modo a certificar profissionais, gestores, conselheiros, membros do governo na compreensão das peculiaridades de IA, qual seria a métrica de sucesso? Teríamos algo como um certificado de proficiência, dizendo que somos aptos a executar nossas funções?
  • Como garantir que os dados, que serão coletados por sistemas de IA capazes de reconhecer pessoas e objetos do mundo, e ainda, capazes de interpretar comportamentos do mesmo modo que nós humanos fazemos, não sejam utilizados por outros sistemas de IA?
  • Como gerenciar o ecossistema cibernético de maneira integrada?
  • Qual a definição de fair competition em um mercado onde as decisões são feitas pela IA sem a intervenção humana?
  • O que é transparência para IA?

Enfim, trata-se de provocações para o qual não conheço respostas satisfatórias até o momento. Sei que vamos evoluir, porém desconheço o horizonte de tempo para isto.

NO JARDIM DE PEDRAS...

A rosa é linda. A rosa se destaca neste jardim de pedras. A rosa perfuma e mexe com a nossa imaginação. A criança se aproxima dela e, por descuido, enche a mão para toma-la pelo caule. Os espinhos machucam. E já é tarde demais. Ela já formou sua opinião sobre as rosas.

Compartilhar:

Colunista

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e também escritor de ficção, tendo sido finalista do prestigioso prêmio Jabuti. Reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo; até há pouco tempo, por exemplo, era country manager do SAS no Brasil.

Artigos relacionados

Imagem de capa A COP, as lentes e o maior dos dilemas

Sustentabilidade

01 Dezembro | 2023

A COP, as lentes e o maior dos dilemas

A prestação de contas da Conferência do Clima de Dubai, que começou ontem, vai deixar claro: as coisas estão indo mal no combate ao colapso climático e o dilema principal está longe de ter sido enfrentado. Mas acompanhar a COP pode ser útil para acelerar conscientização e mudanças

Viviane Mansi

4 min de leitura

Imagem de capa Dá para discordar produtivamente em temas polêmicos?

xtended

01 Dezembro | 2023

Dá para discordar produtivamente em temas polêmicos?

Em vez de evitar discussões sobre temas polêmicos, aprenda a ter conversas ponderadas que ajudem na construção de entendimento e respeito mútuos

Kenji Yoshino e David Glasgow

16 min de leitura

Imagem de capa Ações de sustentabilidade em larga escala pedem incentivos

COP 28

30 Novembro | 2023

Ações de sustentabilidade em larga escala pedem incentivos

É preciso ir além das discussões superficiais e abordar a necessidade, ou não, de as empresas terem incentivos econômico-financeiros para priorizar ações de sustentabilidade e mexerem de fato os ponteiros. Veja o caso do Japão

Satoshi Ikeda e Simon Glynn

11 min de leitura

Imagem de capa Reforma tributária: vai gerar a saída de empresas de tecnologia do Brasil?

Gestão da tecnologia

29 Novembro | 2023

Reforma tributária: vai gerar a saída de empresas de tecnologia do Brasil?

A tendência é que a reforma tributária eleve os custos de TI, inovação, serviços digitais e internet. É preciso fazer mudanças urgentes para que consiga (de fato) gerar as vantagens às quais propõe, caso contrário, será um obstáculo para a manutenção e a sobrevivência de algumas empresas no País

Diego Brites Ramos

4 min de leitura

Imagem de capa Visão sistêmica e acesso à inovação para desbloquear o potencial da IA

Coprodução MITSMR + Intel

28 Novembro | 2023

Visão sistêmica e acesso à inovação para desbloquear o potencial da IA

Em evento realizado pela MIT SMR Brasil, especialistas destacam a importância de criar soluções democráticas e alinhadas às necessidades de negócios

Thomaz Gomes

3 min de leitura