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O decreto federal 11.075 e o Acordo de Paris

Ele pode ser o primeiro passo para a entrada do Brasil no comércio de créditos de carbono

Colunista Carlos de Mathias Martins

Carlos de Mathias Martins

03 de Agosto

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Artigo O decreto federal 11.075 e o Acordo de Paris

Em 2018, o americano William Nordhaus, professor da Universidade de Yale, foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia por teorizar sobre o conceito do “free-rider” nos pactos globais que objetivam reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEEs). Por definição, o “free-rider” é aquele país que não cumpre com as suas metas de redução de emissões mas termina por se beneficiar pelo esforço coletivo de outros países. É, como o nome diz, um caroneiro.

Tendo em vista que a mudança climática é um fenômeno de impacto global, o país “free-rider” leva vantagem em não gastar recursos humanos e financeiros para descarbonizar suas atividades econômicas. Para mitigar o efeito nocivo do “free-rider”, William Nordhaus sugere a criação de clubes de carbono entre países, com regras de taxação sobre as emissões de GEEs e sanções comerciais para nações inadimplentes em seus compromissos climáticos.

Nordhaus mirava principalmente os compromissos voluntários que não coíbem a figura do carona, tal qual o Acordo de Paris. Para ele, sanções comerciais levariam os caronas ao ostracismo e evitariam a desmoralização dos acordos climáticos. De fato, na minha experiência como operador no mercado de carbono, as negociações de acordos climáticos começam como negociações ambientais e terminam como negociações comerciais.

Para Nordhaus, a origem do “free-rider” em tratados climáticos remonta ao chamado “dilema westfaliano”. O Tratado de Westfália, de 1648, estabeleceu os princípios norteadores do direito internacional que caracterizam os Estados modernos:

  • Nações são entes soberanos e possuem o direito fundamental à autodeterminação.
  • Nações são livres para conduzir seus assuntos internos sem a interferência de outras nações.
  • Estados soberanos têm igualdade jurídica. Em resumo, acordos climáticos não estão sujeitos a um ente regulador global, e na ausência de tal ente uma alternativa às sanções comerciais previstas nos clubes de carbono de Nordhaus seria a guerra. Uma vez que as mudanças climáticas representam risco existencial à humanidade, eu não descartaria a possibilidade de líderes populistas belicosos utilizarem a retórica ambientalista para invadir países supostamente inadimplentes em seus compromissos climáticos.

No âmbito dos compromissos climáticos assumidos ainda no governo de Dilma Rousseff, o Brasil apresenta trajetória preocupante em relação ao aumento das emissões associadas ao desmatamento. Segundo a MapBiomas – rede colaborativa formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia – a supressão de vegetação nativa no Brasil aumentou 20% em 2021 ante os indicadores de 2020, atingindo área desmatada equivalente a mais de 1,6 milhão de campos de futebol.

A realidade é que independentemente das nossas metas de redução de emissões de GEEs, o Brasil perdeu a licença social de desmatamento perante os formadores de opinião nos fóruns globais. Entretanto, e não obstante a retórica do governo brasileiro, setores relevantes do executivo e do legislativo federal, bem como parte do PIB nacional, têm manobrado para regular a criação de um mercado local de carbono, cientes das implicações comerciais para a economia do país em caso de descumprimento das nossas metas climáticas.

Nesse sentido, em maio deste ano, o governo federal publicou o decreto 11.075, que estabelece regras para a definição de metas climáticas setoriais para diversas atividades econômicas, e instituiu o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare). Em até um ano, todos os setores relevantes do PIB brasileiro terão que apresentar aos reguladores nacionais metas de redução de emissões de gases de efeito estufa.

Caso o cronograma do decreto seja cumprido, estimo que em meados de 2025 empresas brasileiras estarão comercializando créditos de carbono no mercado regulado nacional. Muitos analistas criticam o decreto utilizando a lógica de Machado de Assis: ele pode ser dividido em duas partes, uma boa e uma ruim. Para esses verdugos, o problema é que a parte boa é irrelevante e a parte relevante está ruim.

Eu discordo. Considero o decreto 11.075 como o primeiro passo para a inserção do Brasil no comércio global de créditos de carbono, conforme pactuado no artigo sexto do Acordo de Paris.

Por fim, um item muito importante do decreto é a definição da natureza jurídica dos créditos de carbono. Obviamente interessa ao setor financeiro nacional um regramento que inclua obrigatoriamente bancos e instituições financeiras no arcabouço regulatório do mercado de carbono.

Para tanto, uma alternativa seria submeter o incipiente mercado de carbono à tutela da Comissão de Valores Mobiliários. Nesse caso, os operadores do mercado de carbono estariam sujeitos a todo tipo de pedágio cobrado pelo oligopolizado sistema financeiro nacional. O fato é que em decisão proferida, em julho de 2009, a CVM já se posicionou contrária à definição dos créditos de carbono como valor mobiliário.

O decreto 11.075 encerra essa discussão – ao menos por enquanto – ao definir de forma inequívoca que o crédito de carbono é um ativo financeiro e não um valor mobiliário. Parece contraditório, mas ativos financeiros podem ser comercializados sem a intermediação de instituições financeiras. Valores mobiliários, não. Mais Pix e menos TED é o meu lema.

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Carlos de Mathias Martins

Carlos de Mathias Martins é engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP com MBA em finanças pela Columbia University. É empreendedor focado em cleantech.

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