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Liderança

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Redefinindo o valor do trabalho - parte 1

Embora, para a maioria dos líderes, a sobrevivência no curto prazo seja o único item da agenda, alguns já se posicionam para o que virá. Este artigo, em duas partes, discute o que virá em termos de trabalho. O texto a seguir, parte 1, repassa o que era para ser o futuro do trabalho antes da pandemia

Colunista Paul Ferreira

Paul Ferreira

15 de Maio

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Artigo Redefinindo o valor do trabalho - parte 1

Nas últimas semanas, tenho conversado com dezenas de executivos seniores sobre o tema lidar com a crise do coronavírus e suas consequências. Para uma maioria, embora silenciosa, a sobrevivência no curto prazo é o único item da agenda. Outros, definitivamente mais vocais, já estão pensando em como se posicionar depois que a crise passar e afirmam que não podemos voltar ao que éramos. Em vez disso, devemos avançar com confiança para um mundo novo e muito mudado; um novo normal símbolo de uma nova ordem econômica e social global. 

A pergunta que sempre faço para esse segundo grupo é: Como será a aparência do novo normal? Por que o que encontraremos do outro lado será diferente do normal dos últimos anos? É impossível saber o que vai acontecer e difícil dizer quanto tempo durará a crise. Mas é possível considerar as lições do passado, distantes e recentes, e com base nisso, pensar construtivamente sobre o futuro. Para contextualizar essa abordagem, quero aprofundar a questão do trabalho e do seu valor no cenário pré-, durante e pós-Covid 19. 

O trabalho e seu valor no cenário pré-Covid-19

A etimologia da palavra trabalho é discutida e não é unânime. Segundo historiadores, a palavra começou a assumir o significado que conhecemos hoje, ou seja, o da atividade produtiva, a partir do século 15. No entanto, ainda havia uma distinção importante entre a dimensão "Labor" (punição no trabalho, dor no trabalho, consequência do pecado) e a do "Opus" (trabalho criativo, atividade natural). É a revolução industrial dos séculos 18 e 19 que estabelecerá o trabalho em seu sentido econômico atual, como atividade remunerada que permite a produção de bens e serviços. A par do capital, é um fator de produção que contribui para a atividade econômica, sendo fornecido principalmente por funcionários em troca de salário.

Nos últimos anos, no entanto, acadêmicos, profissionais, políticos e o público em geral têm alimentado discussões ricas, no contexto do "futuro do trabalho." O objetivo é levar em conta novos desenvolvimentos tecnológicos – como inteligência artificial (IA), aprendizado de máquina e digitalização – que estão contribuindo para uma "Quarta Revolução Industrial.”[i] Esses avanços radicais na tecnologia estão atrapalhando as práticas de trabalho estabelecidas, as estruturas organizacionais e as instituições da sociedade, tais como mercados de trabalho, regimes fiscais e sistemas de educação / capacitação. Além disso, os efeitos da inovação tecnológica estão sendo amplificados por tendências demográficas e mudanças sociopolíticas – como imigração, crescente participação da força de trabalho feminina, envelhecimento da população, e novas preferências geracionais – que questionam os entendimentos tradicionais de trabalho, carreiras e vida familiar. Em particular, o debate sobre o futuro do trabalho centrou-se nestas três discussões:

1. Como as rápidas mudanças tecnológicas afetam o número de empregos?

As tarefas que podem ser realizadas pelo aprendizado de máquina e a IA são muito mais abrangentes do que as gerações anteriores de tecnologia tornaram possível. O escopo expandido mudará o valor que os empregadores atribuem às tarefas e os tipos de habilidades mais procurados. Assim, um relatório recente da McKinsey revelou que 30% das "atividades de trabalho" poderiam ser automatizadas até 2030 e até 375 milhões de trabalhadores em todo o mundo poderiam ser afetados por tecnologias emergentes[ii]

Outros estudos contestam as previsões sombrias com base em novas posições que serão criadas para compensar as perdas de empregos, principalmente em arquitetura, engenharia, informática e matemática, e nos setores assistenciais em consonância com o envelhecimento populacional. Embora ainda seja difícil chegar a um termo entre otimistas e pessimistas, pesquisas tendem a convergir para a hipótese de polarização de empregos, que encontra uma parcela decrescente de emprego entre as ocupações de nível médio e uma proporção crescente de empregos entre pessoas de baixa e alta qualificação. 

2. Como as rápidas mudanças tecnológicas afetam as relações trabalhadores-organizações?

Nas últimas décadas, formas de emprego flexíveis aumentaram significativamente nas economias desenvolvidas e em desenvolvimento[iii]. Espera-se que, até ao fim de 2020, 40% do trabalho nos Estados Unidos seja realizado por freelancers. Na América Latina, 56% dos trabalhadores são autônomos ou trabalham em microempresas. Essas formas incluem principalmente trabalho independente realizado através de plataformas, agências ou diretamente em regime a tempo integral ou parcial ou de emprego temporário. Assim, a expansão de uma força contingencial oferece novas dinâmicas para as relações trabalhadores-organizações e suscita preocupações tanto para os trabalhadores quanto para os empregadores. Para os trabalhadores, essas formas de emprego estão geralmente associadas a um trabalho precário com salários baixos, horas insuficientes e variáveis, menos treinamento e desenvolvimento de carreira reduzido, contratos de curto prazo e direitos limitados de proteção social. 

Os empregadores, por outro lado, podem beneficiar, a curto prazo, de maior flexibilidade e redução de custos (especialmente se os contratos de trabalho estiverem isentos de contribuições sociais e outros benefícios para os colaboradores). No entanto, é provável que esses ganhos financeiros de curto prazo sejam superados por perdas de produtividade a longo prazo por meio da erosão das habilidades e conhecimentos organizacionais específicos, limitando a capacidade de respostas das empresas às mudanças na demanda do mercado. Além disso, os empregadores podem subestimar a magnitude das demandas gerenciais que acompanham essas novas relações, especialmente se uma proporção considerável de sua força de trabalho se enquadrar nesses tipos de emprego.

3. Como as rápidas mudanças tecnológicas afetam desigualdades de distribuição de renda?

Historicamente, a mudança tecnológica beneficiou trabalhadores com habilidades mais valiosas, causando um agravamento da desigualdade salarial. Pesquisas mostram que, enquanto o “americano médio” pensa que a desigualdade de remuneração (diferença entre o salário mais alto e o salário médio de uma organização) é 30:1, ela fica próxima de 300:1. 

Essa diferença aumentou constantemente nos últimos anos. Com a polarização de empregos, o número absoluto de vagas para trabalhadores de renda média está em declínio. O FMI observa que, nos Estados Unidos, desde 2000, apenas 0,3% das famílias de classe média subiram para níveis mais altos de renda, em comparação com 3,3% das famílias que desceram a escada de renda, aumentando ainda mais a desigualdade.

Além disso, a crescente importância do setor financeiro na economia, a adoção de estratégias de curto prazo para influenciar os preços das ações, e a crescente concentração dos lucros em empresas estrelas como Google, Facebook, Amazon e Apple, aumentaram substancialmente os retornos aos proprietários de capital sob forma de dividendos, enquanto os salários permaneceram estagnados. Essa lógica de maximização do valor para os acionistas combinada com a apropriação dos ganhos de produtividade surgidos dos avanços tecnológicos está contribuindo para a maior desigualdade de renda. 

Em linha com essas reflexões, a questão que se levanta é como a natureza e o valor do trabalho estão sendo afetados pela recente crise do Covid-19 (um evento repentino e inesperado do tipo "cisne negro")? Isso irá atrapalhar, desviar ou acelerar muitas das mudanças já em andamento?

Abordarei as respostas na minha próxima coluna, em junho.

REFERÊNCIAS:

[1] Schwab, K. (2018). Shaping the Fourth Industrial Revolution. Geneva: World Economic Forum.

[1] https://mck.co/2z39Koy

[1] https://bit.ly/3aZLuAV

[i] Schwab, K. (2018). Shaping the Fourth Industrial Revolution. Geneva: World Economic Forum.

[ii] https://mck.co/2z39Koy

[iii] https://bit.ly/3aZLuAV

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Autoria

Colunista Paul Ferreira

Paul Ferreira

É professor em tempo integral de estratégica e liderança na Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP, Brasil), diretor do mestrado executivo em administração (MPA) da FGV EAESP e vice-diretor do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas (NEOP). Desde 2020, Paul é colunista do MIT Sloan Management Review Brasil. Além disso, ele é pesquisador visitante permanente na Universität St. Gallen (Suíça).

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