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Viajamos de trem de Paris a Glasgow

Se você já sabe que a COP26 foi um avanço sobre o Acordo de Paris, precisa saber os detalhes que importam ao Brasil, como o parágrafo 10 da declaração conjunta China-EUA

Colunista Carlos de Mathias Martins

Carlos de Mathias Martins

16 de Dezembro

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Artigo Viajamos de trem de Paris a Glasgow

Após duas semanas de intensas negociações na COP26, delegados de 197 países produziram o Glasgow Climate Pact que inclui uma pletora de compromissos voluntários de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEEs), além do tão aguardado marco regulatório para a implementação do mercado de carbono previsto no Acordo de Paris. Sou um veterano de conferências climáticas da ONU ou COPs, do inglês conference of the parties, e arrisco dizer que nada mais me surpreende no âmbito da convenção do clima.

Muito do que foi decidido em Glasgow já estava pactuado nas reuniões preparatórias que antecederam a COP26 e o multilateralismo, para o bem e para o mal, permite tão somente avanços incrementais em negociações desse tipo. De inusitado mesmo apenas a testagem diária obrigatória para Covid-19.

Ainda na linha da prevenção e controle da pandemia, todas as pessoas que adentravam o pavilhão principal da conferência permaneciam obrigatoriamente mascaradas. Falando em mascarados, mas no sentido de marrentos, deram as caras também muitos ativistas, advogados, políticos, jornalistas e empresários, donos de todas as respostas para os males que afligem a Terra.

Mas, enfim, talvez embalados pela abundância de scotchs de primeiríssima qualidade, os quase 30 mil delegados presentes em Glasgow conseguiram resolver os entraves ao Acordo de Paris que perduravam por seis longos anos.

Eu passei a respeitar as propriedades elucidativas de um bom whisky depois de assistir à película cinematográfica Casablanca, considerada por muitos o maior longa-metragem de todos os tempos. Nesse filme de 1942, Rick Blaine, interpretado pelo ator americano Humphrey Bogart, enxuga o que parece ser uma garrafa de single malt Balvenie 21 anos, na sofrência pelo amor da ativista Ilsa Laszlo interpretada pela atriz sueca Ingrid Bergman.

Após digressionar alcoolizado ao som de As Time Goes By, Rick aparece recomposto para executar com pragmatismo o plano que irá salvar a vida do casal Ilsa e Victor Laszlo, heróis da resistência contra o nazismo. Mas eu divago muito e não quero dar spoiler do filme a quem não o viu. Voltando ao tema da COP, confesso que em dado momento a sensação generalizada era de deja-vu all over again. No começo da segunda semana de conferência parecia que nós, os delegados, tal como Ilsa e Rick em Casablanca, teríamos que nos contentar com Paris.

Diretrizes para o comércio da redução de emissões

O Glasgow Climate Pact (GCP) é parte de uma série de documentos compilados durante a COP26 pela Convenção-Quadro da ONU sobre a Mudança do Clima e seus órgãos subsidiários. Logo no primeiro parágrafo do texto principal do GCP, denominado “Ciência e Urgência”, os países signatários da convenção são convocados a publicar metas climáticas mais ambiciosas já em 2022.

Segundo estimativas do GCP, até 2030 as emissões globais de GEEs precisam diminuir aproximadamente 45% ante os níveis de 2010 para permanecermos na trilha do almejado net zero – ou emissões líquidas de gases de efeito estufa iguais a zero – na metade do século.

Entretanto, ainda segundo o GCP, a consolidação de todas as metas climáticas anunciadas pelos países que fazem parte da convenção indica que em 2030 o volume de emissões de GEEs aumentará 13,7% ante os níveis de 2010. Ou seja, estamos em trajetória de emissões de GEEs ascendente e, portanto, contrária ao objetivo de limitar o aumento de temperatura da superfície terrestre em até 1,5 graus Celsius, conforme pactuado no Acordo de Paris.

Com relação à estruturação de um mercado de carbono proposto no âmbito do artigo 6 do Acordo de Paris, as partes da convenção do clima estabeleceram diretrizes preliminares para o comércio de redução de emissões entre países e empresas. O regramento final deve demorar alguns anos até sua completa implementação, mas o marco regulatório contempla a cooperação entre países através das Internationally Transferred Mitigation Outcomes, e o comércio de reduções de emissões a partir de atividades elegíveis, tendo como instrumento de negociação as A6.4ER, ou article 6.4 emission reductions.

Ainda no contexto do artigo 6 do Acordo de Paris, vale registrar o esforço da diplomacia brasileira que, nas últimas rodadas de negociação em Glasgow, conseguiu barganhar uma transição ordenada do regramento do mercado de carbono, vigente até o ano passado e estabelecido pelo Protocolo de Kyoto, preservando o interesse de empresas nacionais. Esta COP presenciou também uma batelada de acordos bilaterais e multilaterais, incluindo dois de especial relevância para o Brasil: o Global Methane Pledge e a US-China Glasgow Declaration.

Mais de 100 países, incluindo o Brasil, assumiram o compromisso de reduzir emissões de metano – um potente GEE – em ao menos 30% até 2030, compromisso esse que. dentro das nossas fronteiras, será arcado majoritariamente pelo setor agropecuário. Já com relação à declaração conjunta EUA-China, o parágrafo 10 do documento aparenta ter sido redigido para o Brasil. Os dois países se comprometem a banir importações de produtos originados em áreas desmatadas ilegalmente. Parece evidente que a pressão comercial em cima do agronegócio brasileiro vai ser cada vez mais forte e o setor vai ter que provar que não é cumplice do desmatamento ilegal.

Por fim, os países desenvolvidos prometeram mas não entregaram um cronograma para desembolso de US$100bi anuais para financiar o combate às mudanças climáticas. Deve ser este o exemplo de blá, blá, blá ao qual a ativista Greta Thunberg se refere.

Mas para mim, o episódio que traduz a essência das conferências do clima ficou reservado para o último dia da COP26. Para surpresa de ninguém minimamente informado, os delegados pragmáticos de China e Índia vetaram a redação original do texto sugerido na véspera do encerramento da conferência que proclamava o phase-out do carvão para geração de eletricidade. O texto final foi diluído para phase-down. É simplesmente inaceitável para países em desenvolvimento abrir mão de alternativas energéticas mais baratas, tal como o carvão, e nenhum ativismo de Hollywood irá convencer Bollywood a mudar de ideia.

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Carlos de Mathias Martins

Carlos de Mathias Martins é engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP com MBA em finanças pela Columbia University. É empreendedor focado em cleantech.

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