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Sustentabilidade

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50 tons de laranja e o Acordo de Paris

A expectativa de que o Brasil pudesse ganhar dinheiro com o artigo 6 do tratado parece, agora, ser em vão, mas a mudança de governo nos EUA pode mudar os rumos – ou não

Colunista Carlos de Mathias Martins

Carlos de Mathias Martins

25 de Novembro

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Artigo 50 tons de laranja e o Acordo de Paris

Cinéfilos atentos às mensagens subliminares da trilogia O Poderoso Chefão sabem que a simples aparição de uma laranja em cena simboliza prenuncio de morte. Nos filmes da tríade ítalo-americana, dezenas de personagens, entre mafiosos e pedestres, sucumbem à maldição da laranja em cena, culminando com a morte de Don Vito e Michael Corleone, ambos protagonistas da série, momentos depois de manusearem o fruto alaranjado.

A conexão pode parecer esdruxula, mas a vida sempre imita a arte e a eleição do Darth Vader cor de fanta para a presidência dos Estados Unidos em 2016 foi um prenúncio de todo o fascismo fascista que assola a humanidade. Nesse contexto de risco existencial ocasionado pelas mudanças climáticas, para surpresa de ninguém, no dia 4 de novembro, cumprindo uma promessa de campanha, o Thanos cor de sukita finalmente retirou os EUA do Acordo de Paris.

O ACORDO DA CIDADE-LUZ

O Acordo de Paris é um documento de 16 páginas cuja versão final foi negociada em dezembro de 2015 durante a COP21 (conference of the parties) no âmbito da convenção da ONU sobre a mudança do clima. O objetivo desse tratado é estabelecer um arcabouço regulatório para fomentar medidas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) a fim de limitar o aumento de temperatura da Terra em até 2ºC.

O Brasil ratificou o tratado em 12 de setembro de 2016 e o Acordo de Paris entrou em vigor em 4 de novembro de 2016, após o número mínimo de 55 países signatários – representando mais de 55% das emissões globais de GEE – ser atingido. Conforme alinhavado no Acordo de Paris, os governos nacionais signatários do tratado estabeleceram compromissos de redução de emissões de GEE a partir das chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas – ou NDC na sigla em inglês.

A NDC do Brasil estipula metas de redução de emissões de GEE em 37% ante os níveis de 2005, aferidos no ano de 2025, e chegando a 43% em 2030. Esse compromisso brasileiro corresponde a emissões líquidas de 1,3 bilhão de toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e) em 2025 e 1,2 bilhão de tCO2e em 2030. Emissões líquidas contabilizam as remoções de GEE por sumidouros de carbono tais como florestas ou sistemas agroflorestais.

Ocorre que, de acordo com o SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa), as emissões líquidas do Brasil totalizaram 1,57 bilhões de tCO2e em 2019, comparados a 1,39 bilhão de tCO2e em 2018, um aumento de 13%. Ainda de acordo com dados do SEEG, o aumento das emissões de GEE em 2019 foi puxado pelo desmatamento, em especial na Amazônia. A quantidade de gases de efeito estufa lançada na atmosfera pelo desmatamento subiu 23% em 2019, atingindo 968 milhões de tCO2e – contra 788 milhões em 2018.

Antes que esses números sejam questionados pelos prepostos brasileiros do Lorde Voldemort alaranjado (para continuarmos nas metáforas cinéfilas), o SEEG compila dados de emissões de GEE obtidos junto a relatórios governamentais, institutos, centros de pesquisa, entidades setoriais e organizações não governamentais.

Enfim, não é surpresa para ninguém, mas, nesse ritmo, o Brasil não irá cumprir com o compromisso assumido no Acordo de Paris.

O ARTIGO 6 PERDIDO

Estabelece o artigo 6 do Acordo de Paris que os países signatários do tratado poderão optar por cooperar de maneira voluntária na implementação de suas NDC comercializando “internationally transferred mitigation outcomes”. Explico. Países que consigam reduzir emissões de GEE além de suas NDC podem optar por vender esse superávit para países deficitários.

O regramento desse mercado de emissões de GEE não está pactuado, e existe preocupação com a contabilização dessas eventuais transações, no sentido de evitar a dupla contagem – isso aconteceria se um país vendesse seu superávit e, ao mesmo tempo, contabilizasse a redução de emissões no cumprimento da sua própria NDC. Mas acho que nem precisamos nos preocupação em combinar isso. Ceteris paribus, ou seja, se mantida a forma como a aceleração do desmatamento está sendo tratada pelos amigos do Coringa cor-de-laranja em Brasília (mais cinema), nosso país nunca terá superávit para comercializar mesmo. Enfim...

O ARTIGO 6 RECUPERADO?

Acredito que foi no âmbito deste artigo 6 do Acordo de Paris que Zé Soneca, do inglês Sleepy Joe, presidente eleito dos EUA, acenou com US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia. É óbvio que uma proposta aparentemente generosa oferecida pelo candidato que derrotou o Lúcifer-cor-de-Garfield (agora remetendo a séries e animações) deve ser avaliada com bastante atenção.

Mas, indo para o campo musical, sempre é bom lembrar que “laranja madura na beira da estrada pode estar bichada Zé, ou pode ter maribondo no pé”.

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Carlos de Mathias Martins

Carlos de Mathias Martins é engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP com MBA em finanças pela Columbia University. É empreendedor focado em cleantech.

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