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Inteligência Artificial

7 min de leitura

O que a inteligência artificial não é

Uma análise dos princípios e processos que fazem da IA uma mímica digital da inteligência humana.

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

31 de Janeiro

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Artigo O que a inteligência artificial não é

Entre a influência que os meios de comunicação e os executivos de grandes empresas de tecnologia exercem sobre o entendimento do público em geral acerca das oportunidades e ameaças da inteligência artificial (IA), noto certa deformidade dos princípios fundamentais da tecnologia.

Há uma gama enorme de afirmações sobre as oportunidades da IA e muitas outras sobre os seus riscos. E é, assim, que um grande contingente de líderes e profissionais vão moldando seu entendimento sobre o que é inteligência artificial e o que ela é capaz de fazer. O que de, algum modo, compromete visões esclarecidas a seu respeito.

Contudo, tais entendimentos se entrelaçam com a velha metalinguagem que os diferentes partícipes do mundo da IA utilizam para falar da “grande novidade”. Mas há que ser cuidadoso. Como escreveu Edward Burke: “nunca estamos totalmente novos naquilo que melhoramos, nem totalmente obsoletos naquilo que preservamos”.

Em outros artigos, já aludi aos princípios fundamentais da IA, que a outorgam o estatuto da mímica extraordinária de nossa inteligência. Por vezes, nos esquecemos desta “medula óssea” (os princípios) e deixamos nos encantar com o corpo delgado e cheio de articulações que vestimos com a moda da novidade excepcional. Não podemos esquecer que a medula é a longeva sobrevivente de outras engenhosidades ancestrais que sustentam o corpo que ora temos à disposição.

No que diz respeito à IA, esta medula é formada a partir de três conceitos: repetição, automação e otimização.

Repetição

Se um processo pode ser repetido, logo é possível descrevê-lo como uma sequência organizada de tarefas. Algo como um script, que habilita outra pessoa a obter resultado semelhante ao que originalmente foi alcançado na idealização do processo que também pode ser entendido como um método ou uma função.

Entre humanos, desde muito, se faz uso da repetição de processos. É possível imaginar, lá no paleolítico inferior, um jovem australopiteco repetindo o método que os mais velhos usavam para lascar as pedras de modo a transformá-las em objetos cortantes ou pontiagudos.

De outra sorte, o Algoritmo de Euclides, concebido pelo matemático Euclides de Alexandria por volta de 300 a.C. para encontrar o máximo divisor comum entre dois números inteiros diferentes de zero, se referia a uma função matemática que, mais tarde, haveria de ser generalizado para outras estruturas matemáticas, como polinômios multivariados.

Métodos e função são para a inteligência artificial como o tutano que produz as células sanguíneas necessárias ao transporte do oxigênio para os seus pulmões.

Na verdade, qualquer coisa pode ser descrita por uma função – o som que chega aos nossos ouvidos é uma função, a luz que chega a nossa retina é uma função, a pesagem de frutas numa mercearia é uma função, a receita para fazer um bolo de chocolate pode ser descrita como uma função e mesmo o processo de assar o bolo pode ser descrito com tal.

De certo, função, método e processo se confundem nos nossos discursos. Porém, convêm ao objetivo de nos dar a capacidade de repetir algo que já tenha sido feito anteriormente.

Automação

Se uma tarefa pode ser repetida, ela pode ser automatizada mecanicamente, eletronicamente ou digitalmente. Para tanto, é preciso apenas oferecer as variáveis conhecidas e esperar que a função embarcada no engenho mecânico, nos circuitos eletrônicos ou nas linhas de código dos computadores nos entregue os resultados esperados.

Curiosamente, a automação é um conceito mais antigo do que se imagina. Ela faz um flerte evidente entre a ideia de robotização, sendo um expediente de engenharia.

Os engenheiros de 1711, por exemplo, projetaram autômatos extraordinários, usando um sistema de engrenagens semelhante aos relógios de precisão suíços.

Pierre Jaquet-Droz, Henri-Louis Jaquet Droz e Jean-Fréderic Leschot projetaram e construíram – na forma de “brinquedos” de entretenimento destinados a melhorar as vendas de relógios entre a nobreza da Europa no século XVIII – ancestrais remotos dos robôs modernos. Estes podem ser apreciados, ainda em funcionamento, no Musée d'Art et d'Histoire de Neuchâtel, na Suíça.

Em particular, um dos mais complexos autômatos desenvolvidos pelos Jaquet-Droz é o Escritor. Este autômato é capaz de escrever qualquer texto personalizado de até 40 letras. O texto é codificado em uma roda onde os caracteres são selecionados um por um. Ele usa uma pena de ganso para escrever e balança o pulso para evitar que a tinta respingue. Seus olhos acompanham o texto que está sendo escrito e sua cabeça se move quando ele pega um pouco de tinta.

Em essência, as engrenagens de Jaquet-Droz funcionam como algoritmos que simulam o processo humano para a escrita.

Note-se que a função executada pelas engrenagens do Escritor poderia estar representada por algoritmos em computadores. Ou seja, as engrenagens são a versão mecânica dos softwares.

Otimização

Processos, métodos e funções que possibilitam a repetição de uma rotina original, quando automatizados, asseguram a obtenção de resultados semelhantes dentro das mesmas condições de possibilidade. Mas o que fazer quando queremos ajustar tais processos para que as diferenças entre os resultados tendam a zero?

Ora, é possível otimizar o processo, torná-lo mais rápido ou mais preciso, criando condições mais favoráveis para a função cumprir o seu objetivo. No caso das representações funcionais em software – os algoritmos – a otimização é bem mais fácil de ser efetuada.

E é aí que entra o brilho daquilo que convencionamos chamar de IA: este processo de repetição, automação e, finalmente, otimização. Porque até aqui, tudo isso pode ser feito por meio de observações humanas que refinam as linhas de software para agregar mais precisão em intervalos de processamento mais curtos. No fundo, é apenas uma mímica digital da inteligência humana.

Função de aproximação

Imagine que você possa observar o resultado de uma função, mas não tenha acesso a ela ou conhecimento a seu respeito. Como você a repetiria, a automatizaria ou a otimizaria?

Bem, neste caso, é preciso um motor de aproximação, um ajustador de uma função genérica que toma como variável de entrada o comportamento observado – o resultado – para, então, aprender, por tentativa e erro, a função que produz o resultado. A isso damos o nome de aprendizado de máquina (machine learning), com suas variações.

Isto não significa que um humano não possa fazer o mesmo, mas dado a engenhosidade matemática na área probabilística com os recursos de processamento de um chip de alta velocidade, a IA é superlativamente mais rápida.

Não precisamos nos assombrar quando lemos que a IA passou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou nos testes de Harvard University. Tivéssemos a possibilidade de ter à disposição todas as bases de conhecimento do mundo e um tempo ilimitado para a realizar os exames, qualquer um de nós, com paciência e disciplina, seria aprovado do mesmo modo. A IA apenas faz isso sem que o cansaço físico e mental a tire do foco de cumprir sua função-objetivo. E ainda o faz com o auxílio de processadores absolutamente mais rápidos do que nós.

Ela repete, automatiza e otimiza da mesma forma que nós. E, por conta disso, não possui qualquer diferencial de inteligência em comparação com os humanos. Ela é apenas uma mímica mais rápida da nossa inteligência básica.

O que a IA não é?

Num post recente que fiz numa rede social, fiz a pergunta: “Afinal, o que a IA não é?”. Obtive algumas respostas interessantes, que vale a pena citar aqui para concluir este artigo.

- A IA não é um oráculo Sem dúvida alguma, o fato de que a IA possa cumprir a função-objetivo de gerar respostas a perguntas realizadas em linguagem natural não a transforma num oráculo. Oráculos pressupõem bem mais do que inteligência, eles pressupõem sabedoria, por vezes, de uma divindade. As máquinas de IA não possuem sabedoria. Sabedoria pressupõe capacidade de juízo em circunstâncias relativistas.

- A IA não é um ser com alma Apartadas as questões místicas, a alma deve ser entendida com a capacidade ontológica de ser no mundo; a capacidade de sentir em si a existência. A IA não sabe que existe e nem sabe que é. Muito menos sente que é o que é enquanto é.

- A IA não é totalmente confiável De certo modo, o caráter de não ser confiável serve bem a qualquer coisa no universo. Não podemos nem mesmo confiar que quando medimos a posição de uma partícula saberemos o seu momento linear, como já enunciava o Princípio da Incerteza de Heisenberg. De perto, nada é confiável. E, no caso da IA, uma tecnologia que foi criada por uma criatura também nada confiável, que faz juízos segundo os seus vieses, ela não poderia deixar de herdar a mesma característica.

Entretanto, há algo muito mais notável quando pensa naquilo que a IA não é. Ela não é descartável, não é desnecessária, não é inútil e não é evitável. Como qualquer tecnologia anterior, a IA é mais um degrau na escada da manifestação humana e de sua habilidade de reformar o mundo em seu favor.

Afinal, as tecnologias, em sua essência, são apenas a manifestação da habilidade humana de repetir, automatizar e otimizar processos, métodos e funções. A IA nos dá apenas uma nova estatura.

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Colunista

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano.

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