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Tecnologia e inovação

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Telemedicina em evolução no Brasil

Pandemia da Covid-19 possibilitou regulamentação da telemedicina em caráter temporário e emergencial, mas Brasil precisa se atualizar para garantir assistência médica à população

Angela Fan Chi Kung, Théra van Swaay De Marchi, Luciana Mayumi Sakamoto e Nicole Recchi Aun

24 de Agosto

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Artigo Telemedicina em evolução no Brasil

Após quase 20 anos da primeira iniciativa regulatória no Brasil, a telemedicina se tornou pauta inadiável das discussões jurídicas por causa da pandemia da Covid-19. Instrumento relevante para o enfrentamento dessa crise sanitária global e para que brasileiros mantenham o cuidado com a saúde enquanto praticam o distanciamento social, a utilização da telemedicina foi regulamentada com o mínimo necessário para sua implementação imediata.

Embora esse cenário inesperado causado pelo novo coronavírus tenha contribuído para a aceleração da telemedicina no país, o panorama regulatório sobre o tema precisa evoluir para que a prática possa se desenvolver de forma consistente, assim como já ocorre em outros países, como Estados Unidos, Israel, China, Austrália, México, Canadá, Europa, África e Japão, que já fazem uso da tecnologia desde meados dos anos 1990.

De acordo com Chao Lung Wen, em artigo no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), os temos telemedicina e telessaúde “referem-se ao uso de tecnologias de telecomunicações, informática e recursos interativos para prover ou realizar atividades e serviços de saúde à distância”. 

Nesse mesmo sentido, Shashi Gogia, no livro Fundamentals of Telemedicine and Telehealth, esclarece que telessaúde literalmente significa curar à distância, em que se nota uma atuação essencial da tecnologia da informação e comunicação. Enquanto a telemedicina compreende o atendimento remoto em si, a telessaúde é um termo mais amplo, que engloba o conceito de telemedicina, incluindo a compreensão dos índices de saúde, medicina preventiva, cursos relacionados à medicina.

Uma regulamentação ética

A telemedicina foi regulamentada em 2002 pela primeira vez no Brasil, apenas do ponto de vista ético, por meio da Resolução nº 1.643/2002 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Em poucas linhas, o CFM reconheceu a telemedicina como uma demanda da sociedade de informação e estabeleceu breves orientações para o seu exercício, autorizando o suporte diagnóstico e terapêutico por médicos que emitem laudos à distância apenas em caso de emergência ou quando solicitado pelo médico responsável pelo paciente. 

Naquela época ainda vigorava o Código de Ética Médica promulgado em 1988 (Resolução n° 1.246/1988), que vedava a prescrição de tratamentos e outros procedimentos sem o exame direto do paciente, salvo em casos de urgência e impossibilidade comprovada de realizá-lo – caso em que o exame direto deveria ocorrer assim que não houvesse mais impedimento. 

Mesmo com sucessivas revogações e substituições do Código de Ética Médica de 1988, a referida vedação foi mantida e outras condições estabelecidas como a proibição de consultas, diagnósticos e prescrições por qualquer meio de comunicação de massa. No entanto, o atual Código de Ética Médica prevê que o atendimento médico à distância pode ser objeto de regulamentação pelo CFM. 

Discussões pontuais

No período entre a publicação da Resolução nº 1.643/2002 até a última atualização do Código de Ética Médica em 2018, o CFM se manifestou a respeito da telemedicina em algumas oportunidades. Um exemplo é o manual de publicidade médica, por meio do qual o CFM indica que os médicos não estão impedidos de orientar por telefone pacientes que já conheçam e que já atenderam presencialmente, para esclarecer dúvidas sobre um medicamento prescrito. Outro exemplo é o parecer emitido pelo CFM em 2017, que trata da utilização de Whatsapp e plataformas similares para comunicação entre médicos e paciente e entre os próprios médicos, para o envio de dados e esclarecimento de dúvidas. 

Ainda que existam normas pontuais de iniciativa do CFM para regulamentar aspectos éticos da telemedicina, tal conjunto normativo se revelou insuficiente para solucionar os desafios de sua implementação. Também foi amplamente criticado por deixar de atender uma das principais demandas da telemedicina, a de proporcionar o acesso aos serviços de telemedicina à distância, sem a necessidade de exame direto ou assistência presencial.

Tentativa em vão

Foi nesse contexto, que em fevereiro de 2019, o CFM publicou a Resolução nº 2.227/2018, regulamentando a telemedicina com maior profundidade e definindo os requisitos necessários para a realização de diferentes modalidades da prática, incluindo teleconsulta, teleinterconsulta, telediagnóstico, telecirurgia, teleconferência, teletriagem médica, telemonitoramento, teleorientação e teleconsultoria. 

No entanto, por conta do alto número de propostas encaminhadas para alteração da Resolução, a norma foi revogada logo na sequência de sua publicação, para uma nova rodada de manifestações da classe médica, fazendo com que a antiga Resolução nº 1.643/2002 fosse restabelecida. Desde então o assunto permaneceu em análise e não voltou às pautas de discussão, até º surgimento da pandemia do novo coronavírus.

A telemedicina em 2020

A pandemia da Covid-19 fez com que a telemedicina se tornasse assunto prioritário, tendo sido objeto de manifestação por parte do CFM e do Ministério da Saúde, com o objetivo de autorizar sua prática em caráter temporário e emergencial a partir de março de 2020. O poder legislativo também tratou do tema, com a publicação da Lei nº 13.989/2020, que reforçou a autorização da prática temporariamente e enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus.

O texto da lei foi publicado após vetos do Poder Executivo que removeram disposições que permitiam a prescrição médica em suporte digital e conferiam ao CFM a competência para regular a telemedicina após a crise da COVID-19. Em agosto de 2020, os vetos foram rejeitados pelo Senado Federal.

Contudo, mesmo com a regulamentação de emergência, a controvérsia acerca do uso da telemedicina para, por exemplo, a realização da primeira consulta via telemedicina permaneceu, pois o CFM não autorizou expressamente a teleconsulta mesmo durante a pandemia. O Ministério da Saúde, por sua vez, autorizou a sua realização, e os diferentes Conselhos Regionais de Medicina ao longo do país divergem a respeito do tema.

Já a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regulamenta o mercado de saúde privado no Brasil, também precisou fazer ajustes na regulamentação aplicável às operadoras de planos de saúde, que prestam serviços de assistência à saúde a mais de 46 milhões de beneficiários, segundo boletim de maio, ou seja, 22% da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 31 de março, a ANS aprovou a adequação do Padrão de Troca de Informações na Saúde Suplementar (TISS) para incluir um novo tipo de atendimento: telessaúde. De acordo com a ANS, a telessaúde não é uma nova modalidade de procedimento, mas tão-somente uma forma de atendimento. Assim, a agência entendeu não ser necessária a atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, estando assegurada aos beneficiários a cobertura assistencial obrigatória da telessaúde pelas operadoras de planos de saúde.

Próximos passos e desafios

É quase unânime o entendimento de que o uso da telemedicina é um caminho sem volta. Ainda que a regulamentação da telemedicina durante o período da pandemia tenha caráter temporário e excepcional, dificilmente retornaremos ao cenário anterior à Covid-19, já que as iniciativas e investimentos para a implementação da telemedicina foram intensificados em tempos de pandemia. Nesse sentido, vale mencionar que existem projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que tratam da autorização do exercício da telemedicina.

Embora diversos países estejam em diferentes estágios em relação ao uso da prática, há desafios em comum, como a diversidade econômica e política, a complexidade na regulamentação do tema, a necessidade de registro do profissional de saúde nos diferentes conselhos estaduais, entre outros.

Com a facilidade de aproximação por meio da telemedicina, surgem questionamentos a serem enfrentados pela regulamentação. Por exemplo, seria possível realizar teleconsulta com médicos em outros países? As operadoras de planos de saúde passarão a ter uma rede credenciada internacional? O prontuário médico será definitivamente eletrônico a fim de garantir o acesso ao histórico do paciente pelos diferentes profissionais de saúde?

De toda forma, plataformas digitais estão surgindo para auxiliar os profissionais médicos na utilização desse mais recurso tecnológico. Independentemente dos diversos interesses conflitantes existentes, a telemedicina tem um único objetivo: prestar assistência à saúde, quebrando barreiras geográficas e expandindo o alcance desses profissionais à população.

Contudo, é necessário que seja praticada de forma segura. Quais serão os mecanismos de proteção adotados pelas plataformas digitais que resguardem os dados pessoais e de saúde dos pacientes? Haverá um controle para a troca massificada de informações entre as plataformas, considerando que os prestadores de serviços acessarão plataformas diferentes? Haverá integração entre Sistema Único de Saúde (SUS) e saúde privada? Haverá interação entre histórico médico do paciente e exames laboratoriais?

As plataformas de telemedicina serão um gigantesco banco de dados relevantes e sensíveis. Para garantir a segurança jurídica necessária ao uso da telemedicina pelos profissionais de saúde e pelos pacientes, é necessário que haja uma legislação adequada e robusta, que enfrente os desafios existentes, em complementação às disposições já incluídas na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/20).

O adiamento desse debate não agrega na discussão e amplia a desassistência da população. Assim como tudo que envolve tecnologia, o seu desenvolvimento é bastante dinâmico e a legislação precisa acompanhar essas mudanças, identificando dificuldades, eventuais falhas, possíveis riscos e aprimoramentos.

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Autoria

Angela Fan Chi Kung, Théra van Swaay De Marchi, Luciana Mayumi Sakamoto e Nicole Recchi Aun

Angela Fan Chi Kung e Théra van Swaay De Marchi são sócias da área life sciences & healthcare do escritório Pinheiro Neto Advogados. Luciana Mayumi Sakamoto e Nicole Recchi Aun são associadas da área life sciences & healthcare do escritório Pinheiro Neto Advogados.

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