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Inteligência Artificial

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Xenobots: a ciência brinca de ser Deus?

Com capacidade de reprodução, os xenobots combinam inteligência artificial e design biológico, indicando ainda uma faculdade "autoconsciente" que provoca questões historicamente pertinentes, como: existem limites para a ciência?

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

30 de Dezembro

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Artigo Xenobots: a ciência brinca de ser Deus?

A ciência é um recurso inexoravelmente humano. Este modo sistemático de observar os fenômenos do mundo e, assim, construir conhecimento a partir do teste de hipóteses e predição de efeitos, remonta à Mesopotâmia e ao Egito antigo, há cerca de 3.000 A.C.

O poder da ciência é intoxicante. O poder da ciência é o poder de poder. É a manifesta vontade de alcançar o entendimento do universo e, quem sabe, superar a finitude.

Os avanços da biotecnologia, a compreensão do código genético e a sofisticação dos algoritmos de inteligência artificial nutrem a esperança dos cientistas em compreender a vida, a mente humana e o princípio universal de tudo o que há. E quem sabe assim, controlar tudo — ter o poder de poder qualquer coisa, como um Deus.

Imagine então a possibilidade de usar células-tronco de embriões de anfíbios para gerar células de pele e células musculares do coração para criar um organismo capaz de sustentar um “corpo”, matéria esta que se contrai e se expande para viabilizar a locomoção em um sistema aquoso.

Acrescente agora a possibilidade de usar algoritmos evolucionários de inteligência artificial que sugiram a forma corporal desta agregação celular e o arranjo das células musculares, de modo a cumprir os objetivos de caminhar, nadar, empurrar partículas, além de colaborar para juntar essas partículas em pilhas. E se esse agregado celular pudesse ainda sobreviver sem alimento por alguns dias e se regenerar em caso de lacerações?

Design biológico e IA: biorobôs

Douglas Blackiston, um pesquisador da Tufts University — especialista em biologia do desenvolvimento, medicina regenerativa e design biológico —, utilizando blueprints de um programa de IA criado por Sam Kriegman, pesquisador de Harvard — especialista em robótica, IA e biologia sintética — concebeu, ainda em 2020, o primeiro xenobot.

Xenobots são formas de vida derivadas de células de um anfíbio africano que foram projetadas por IA para cumprir funções predefinidas como, por exemplo, juntar detritos dentro de uma solução aquosa. São assim entendidos como biorobôs — uma referência a um organismo programável.

Potencialmente, especula-se que futuros xenobots poderiam juntar partículas plásticas dos oceanos em quantidades suficientes para serem recolhidas por um drone e enviadas a um centro de reciclagem, ou, ainda, desentupir artérias humanas.

Do outro lado da mesa do entusiasmo, estão integrantes da comunidade filosófica, reinaugurando discussões de caráter ético acerca dos xenobots. Juntam-se a eles acadêmicos, pesquisadores e entidades representativas da sociedade.

Evolucionismo e natureza dos xenobots

O debate se acirra em razão de que essas “máquinas vivas” não se ajustam aos conceitos de robôs tradicionais e às espécies biológicas conhecidas. É uma entidade totalmente nova — uma vida ou um organismo programável. Os xenobots não recebem instruções genéticas do organismo que doa as suas células, não possuem células nervosas e não precisam de nutrientes. No entanto, esse sistema mantém uma disposição de se agrupar e de se regenerar independentemente.

Já nos acostumamos com a ideia darwinista de que qualquer organismo do planeta encontra sua forma e função pelos mecanismos evolucionários. O caminho da adaptação da vida dá-se pela reprodução. Cada organismo que até então conhecíamos era prole de um organismo similar e as variações de suas características se davam de maneira aleatória, permanecendo ou não no catálogo das espécies bem-sucedidas de acordo com sua função adaptativa às restrições do meio.

No caso dos xenobots, a matriz primordial não é dada pelo caminho da evolução natural. Eles são filhos dos algoritmos de inteligência artificial. Isto impõe uma questão essencial: seriam os xenobots organismos?

A pergunta se tornou mais profunda quando os xenobots passaram a criar cópias de si mesmos — reprodução — de modo não previsto. Eles usam um modelo reprodutivo cinemático — baseado em movimento —, que difere de todas a outras formas de reprodução conhecidas. Em outras palavras, devido à sua forma — que se assemelha ao personagem PacMan dos videogames – ele é capaz de comprimir células na abertura do seu corpo até produzir um bebê xenobot com as mesmas características e com mesmo comportamento.

Essa capacidade reprodutiva concede ao xenobots o caráter de arma biológica que, numa eventual adaptação que inclua sistemas nervosos, pode dar surgimento a cenários perigosos. Sistemas nervosos podem levar os xenobots a uma espécie de “autoconsciência”, entendida aqui como a experiência subjetiva que instaura a disposição de lutar pela sua sobrevivência. Os riscos são significativos.

Expansão e limites da ciência

Todo este debate se dá pelo poder que a ciência intrinsecamente detém de sempre encontrar uma maneira de superar seus limites. No entanto, o que é a ciência senão algo que nasce e deriva do ser humano como modo de lidar com o mundo? Como poderíamos nos convencer de que um instrumento tão efetivo para o avanço da espécie no planeta deveria ser controlado?

Controle e ciência não parecem dialogar com naturalidade. Afinal, se temos o poder de poder testar hipóteses e observar resultados, fazendo inferências determinantes sobre as coisas do mundo, por que deveríamos encurtar esse poder? Se estamos, pelas vias da ciência, cada vez mais perto de um poder semelhante aos dos deuses, criando formas de vidas programadas para fazer isto ou aquilo, onde está o problema?

Sob o ponto de vista ético, o problema está na manutenção da ética, no convencimento de que devemos ser infalivelmente éticos. Entretanto, é preocupante o fato de que depois de mais de 5 mil anos ainda não conseguimos implantar uma lucidez ética homogênea em todas as sociedades e culturas. Não há padrão de governança à priori quando se trata da ética, porque isto demandaria um sistema de crenças incorruptível, coincidente e supra cultural. E crenças não são princípios assimilados do mesmo modo por cada um de nós.

A ciência é metodológica e rigorosa, mas a ética é subjetiva e ajustada às conveniências de cada um. Uma faca pode ser usada para descascar uma maça ou para matar uma pessoa. Depende das urgências de cada um. Mas Deus não tem urgências, logo, brincar de Deus pode ser perigoso.

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Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano.

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