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Marketing e vendas

8 min de leitura

3 passos para o marketing não se tornar um problema do jurídico

Em tempos em que cancelamentos e boicotes a empresas são usuais, marca precisa ser assunto do conselho. No arsenal de iniciativas possíveis dos board members, deve estar listada a proteção ao comportamento arquetípico da marca, por exemplo (lembra-se dos quatro territórios do Jung?)

Colunista Ulisses Zamboni

Ulisses Zamboni

26 de Setembro

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Artigo 3 passos para o marketing não se tornar um problema do jurídico

O conceito de que uma marca é percebida pelos seus usuários como se ela fosse uma pessoa nunca esteve tão presente no marketing como agora. Sua ética, sua moral social, a contemporaneidade de seus atos, os comportamentos inclusivos, enfim, o leque de atitudes esperado pelos usuários é tão infindável que fica muito fácil cair na armadilha intuitiva de humanizar e exigir das marcas uma espécie de código de relação e conduta pública.

A quem devemos essa realidade? Seria resultado da evolução social do século 21 ou do marketing e de suas estratégias mais contemporâneas para o mundo digital? E, ainda, viria da autenticidade percebida nos diálogos entre marca com seus usuários das mídias sociais ou da própria psique humana que só consegue se relacionar com algo semelhante a si mesma?

Talvez seja um composto de todos esses fatores.

Li um relatório do Fórum Econômico Mundial (WEF) de maio deste ano, feito em colaboração com o Institute for Human Rights and Business, que elenca as responsabilidades dos membros de conselho de administração para com os stakeholders de uma empresa, intitulado "Engaging Affected Stakeholders: the emerging duties of board members".Ele perpassa um elenco de responsabilidades dos membros dos conselhos sobre os "affected stakeholders" (ou, numa tradução literal, das "partes interessadas afetadas"), corroborando a importância de o board representar os interesses dos stakeholders em geral, especialmente o dos acionistas. E é aí que coloco foco nesta coluna: O RELATÓRIO DA WEF NEM PASSOU PERTO DESTE TREMENDO LIABILITY EMPRESARIAL QUE SE TORNOU A COMUNICAÇÃO DE MARCA NO MUNDO DIGITAL!

Conselheiro tem que interferir diretamente nas falhas da operação da companhia para proteger sua sustentabilidade, correto? Se for no chão de fábrica, tem todo o direito de rever a linha de produção e outras variáveis; se for serviço ou varejo, deve entender a experiência do cliente que falhou; e por aí vai.

Acontece que no mundo contemporâneo de hoje, não é só a operação que gera ruptura e consequente queda de faturamento nos negócios. A comunicação, ou melhor, o diálogo entre marca e usuário está entrando no hall de liabilities empresariais.

Quem de nós não lembra de algum perrengue recente de marca sobre mal-entendidos ou falhas na comunicação com seus usuários, seja por posts mal-elaborados nas redes sociais ou, ainda, por algum comportamento da empresa que tenha despertado gatilho sobre percepção de relação assimétrica de poder entre marca e consumidor? Ainda mais grave, quem não se lembra de alguma situação em que usuários abandonaram a marca ou até a boicotaram gerando queda imediata na receita da empresa? Certeza de que a resposta para essas perguntas é um sonoro sim.

Hoje, especialmente no varejo – ou nos serviços em geral –, um boicote ou um 'brand-storm' no X (ex-Twitter), Facebook ou Instagram com a marca é um arrasa quarteirão nos objetivos de faturamento do trimestre e que geralmente não consegue ser recuperado dentro do ano fiscal.

O assunto do "como" uma marca deve se comunicar com seus usuários parece tolo, quase irrelevante e, portanto, não deveria ser da competência de um Conselho Empresarial. No entanto, o diálogo entre marcas e usuários e o peso disso atualmente no valor do equity, da marca ou do próprio negócio, é imenso. E, mais importante, impacta diretamente no P&L, de curto e médio prazos, portanto se alinhando automaticamente como interesse legítimo dos acionistas.

Um tripé como 'plano de ação' para conselheiros

É evidente que estamos diante de uma anomalia que precisa ser urgentemente reparada. A expectativa atual é que as empresas não apenas vendam produtos ou serviços, mas que construam uma narrativa coerente, honesta e que ressoe com os valores e necessidades de seus usuários. E, mais do que nunca, os usuários querem ser ouvidos, ter um espaço onde possam expressar suas opiniões e ser levados a sério.

O mais irônico dessa situação é que, ao mesmo tempo que temos à disposição uma gama sem precedentes de ferramentas de comunicação e análise de dados, parecemos estar falhando miseravelmente em aplicar essas ferramentas de maneira efetiva e empática. Uma abordagem mais humanizada, que coloque o diálogo no centro da estratégia, poderia ser a chave para reverter essa tendência.

Aponto para três ações de suma importância na gestão desse assunto dentro dos comitês diretivos ou nos conselhos remunerados. São elas: a previsão de um orçamento de contingência (ou de plano emergencial), a formação de um comitê perene de crise e, não menos importante, o desenvolvimento de uma estratégia de comportamento arquetípico de marcas da empresa.

  1. Previsão de um orçamento de contingência para o ano fiscal. Diferentemente de questões operacionais que têm variáveis mais concretas e, portanto, mais previsíveis para o negócio como interrupção de produção numa indústria por uma greve ou o fornecimento de produtos para o varejo, um 'brand storm' entre marca e usuário nas mídias sociais pode eclodir a qualquer momento. Os diretores financeiros precisam começar a prever esse tipo de evento no orçamento do ano e criar uma espécie de 'buffer' protetor do faturamento da companhia.

Já mencionamos em outra coluna o boicote sofrido pela Anheuser-Busch (InBev) americana por causa de uma ação de comunicação com uma influenciadora trans e sua marca mais tradicional, a cerveja Bud. Informações apontam para um prejuízo de praticamente US$ 4 bilhões. Esse talvez seja o caso de maior repercussão negativa de comunicação neste século, e dificilmente poderia ter sido previsto ou contingenciado financeiramente, mas o caso é prova de que o assunto merece toda a atenção dos conselhos mundo afora.

  1. Formação de um comitê de crise. A eclosão de uma fricção entre marca e usuário é instantânea. Um comitê de crise já deve estar 'em campo' para gerenciar com agilidade os possíveis danos do 'claim' do usuário. Para que esperar uma crise sabendo que esse tipo de evento é iminente dada à necessidade (quase obrigatoriedade) das marcas estarem frente a frente, todos os dias, com a comunidade nas mídias sociais?

Os agentes ativos de um comitê de crise para esse fim devem ser os stakeholders da companhia que são decisores e os experts. Do lado da empresa, sempre com a presença do CEO e do Diretor de Marketing. E do lado dos parceiros, os executivos seniores de PR e de publicidade, responsáveis por mídias sociais. Esse comitê não deve ter apenas uma formação protocolar, mas deve estar ativo e atento, mantendo contatos e conversas regulares sobre o assunto, inclusive discutindo 'benchmarks' de marcas que sofreram provocações dos usuários.

Um kit de sobrevivência à crise deve estar sempre em mãos. A preparação de um dossiê de 'do's and dont's' da marca que possam balizar os critérios de execução de posts, patrocínios e comportamento da marca nas mídias sociais e com influenciadores se faz necessário, além da confecção de um elenco de perguntas e respostas provocadoras e muito desconfortáveis, em que os seniores executivos da empresa são capazes de responder 'com o pé nas costas', sem stress.

  1. Comportamento arquetípico de marca. A técnica mais utilizada para esse tipo de documento é o relatório de atitudes e comportamentos de marca que pode advir de várias técnicas de comunicação. Costumo usar o da metodologia de arquétipos, tropicalizada por mim há mais de vinte anos e, hoje, usada por uma série de empresas de comunicação.

Quando falo de um comportamento arquetípico de marca, estou falando ao mesmo tempo de um arcabouço de 'sins e nãos' que a marca precisa levar. De acordo com o perfil arquetípico da marca, que pode se localizar em 4 grandes territórios, ela poderá/deverá (ou não) entrar em pautas contemporâneas e opinar sobre questões mais cotidianas, até mundanas. Mas, tudo depende do território arquetípico que ela escolheu ou adquiriu com o tempo.

Os quatro grandes territórios arquetípicos, de acordo com Carl Jung, são: disciplina, sociabilidade, liderança e autorreflexão. Em cada território, um elenco de possíveis personagens poderão representar atitudinalmente uma marca. Por exemplo, no território da disciplina, temos o arquétipo do Soberano. Se uma marca detém esse arquétipo, ela deve se comportar e lançar mão de critérios que construam essa atitude. Geralmente as marcas do mercado financeiro tem esse padrão. Outro exemplo, é a do herói, como a da marca Nike. Tudo que ela faz deve estar embebido em critérios de superação e competitividade. E por aí vai com os 60 arquétipos possíveis trabalhados pela metodologia.

O diálogo sobre 'brand storm' nas mídias sociais não pode ser superficial, ou apenas uma estratégia lateral de marca de relações públicas no departamento de marketing. Ele precisa estar localizado no centro do poder e de decisão. Precisa ser genuíno, necessita partir de uma vontade real de entender o outro lado, de construir pontes e não apenas de gerir crises. A questão não é apenas sobre evitar prejuízos financeiros, mas sobre construir uma relação de confiança e respeito mútuo que possa trazer benefícios duradouros para ambas as partes.

É IMPERATIVO QUE os conselhos das empresas comecem a levar em consideração a voz dos consumidores e o diálogo entre marca e usuário de forma mais robusta, perene e estratégica possível, trazendo para a mesa de discussões profissionais capacitados para navegar nesse novo mundo.

Para além das métricas de engajamento e das análises de sentimento, é necessário desenvolver uma compreensão mais profunda das narrativas que estão sendo construídas em torno de uma marca e como elas impactam não apenas a percepção dos consumidores, mas a saúde financeira e reputacional das empresas.

Os diálogos com a sociedade são, ao mesmo tempo, uma benção e uma oportunidade gigantesca para uma marca fortalecer seu valor intrínseco e atuar diretamente na retenção de clientes, mas ao mesmo tempo, um tremendo 'liability' quando mal estruturados ou com critérios fracos e voláteis. Este, portanto, é um assunto vital para os Conselhos Empresariais nos dias de hoje.

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Colunista Ulisses Zamboni

Ulisses Zamboni

Com 40 anos de experiência na área de comunicação, é presidente e sócio da agência Santa Clara, membro do conselho do Grupo de Planejamento no Brasil, membro do Conselho Editorial da MIT Sloan Review Brasil e clinica como psicanalista.

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