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Saúde digital e sustentabilidade: o que uma ida ao Alto Xingu ensina

Estratégias para otimização dos fluxos e construção de ecossistemas de saúde mais sustentáveis, com foco na saúde indígena, devem ser planejadas em consonância com as necessidades específicas desses povos, em respeito aos seus saberes ancestrais e culturalidades

Colunista Gustavo Meirelles

Gustavo Meirelles

23 de Outubro

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Artigo Saúde digital e sustentabilidade: o que uma ida ao Alto Xingu ensina

Em uma célebre canção de Caetano Veloso (“Um índio”, do álbum Bicho, de 1977), um futuro de destruição ambiental completa, no qual todas as populações indígenas foram dizimadas, é tragicamente profetizado em tons de realismo mágico. Nesse tempo-espaço hipotético, o compositor cria a figura de um índio vindo do futuro em “uma estrela colorida, brilhante” que pousará no “coração do Hemisfério Sul, na América”, com ares de salvador da humanidade.

Na epifania tropicalista, o indígena representa um poder transcendental que detém uma avançada tecnologia capaz de conectar uma estrela e a América do Sul, nos revelando algo que pode “ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”.

Com essa imagem na cabeça e Caetano nos fones de ouvido, cruzei o coração do Brasil até o “ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico” onde se encontra a maior reserva indígena do planeta, o Parque Indígena do Xingu. Criado em 1961, o parque situa-se ao longo do limite sul da Amazônia legal brasileira e engloba uma área de mais de 2 milhões de hectares ao longo das margens do rio Xingu, no Mato Grosso, abrigando cerca de 6.000 índios de 16 etnias.

Na agenda, o Kwarup, um ritual emblemático que mescla uma cerimônia funerária com mitos de criação da humanidade, iniciação das jovens virgens à sociedade e celebração das relações entre aldeias vizinhas. Ao meu lado, integrantes da ONG Xingu+Catu, criada em 2022 por médicos e empresários com o intuito de oferecer serviços de saúde a comunidades indígenas em áreas de difícil acesso.

Meu interesse pela causa está relacionado a um entendimento maior: o de que soluções digitais podem contribuir para a promoção da equidade no acesso à saúde, sobretudo para populações historicamente desassistidas. Mais recentemente, a crise climática global trouxe novas questões e perspectivas acerca do tema. Estudos demonstram que o setor de assistência à saúde é responsável por parcela significativa das emissões globais de gases de efeito estufa, em sua maior parte oriundos do consumo energético em sua longa cadeia de suprimentos.

No entanto, em um País com dimensões continentais como o Brasil, o deslocamento terrestre ou aéreo de pacientes de pequenas localidades para grandes centros constitui fator incremental para essa conta. Por outra via, estudos apontam ainda que povos originários e ribeirinhos estão entre as populações mais vulneráveis às mudanças do clima, por motivos diversos como doenças relacionadas a patógenos emergentes, poluição ambiental e insegurança alimentar.

Nesse contexto, a implementação de práticas de ESG (governança ambiental, social e corporativa) no setor de assistência à saúde ainda é um grande desafio. Na era da saúde digital, estratégias como a teleconsulta e o telediagnóstico no suporte e capacitação de equipes locais têm grande potencial na otimização dos fluxos e construção de ecossistemas de saúde mais sustentáveis.

No caso específico da saúde indígena, tais ações devem ser planejadas em consonância com as necessidades específicas desses povos, em respeito aos seus saberes ancestrais e culturalidades.

Com um perfil de médico e pesquisador, volto do Xingu me perguntando qual seria, parafraseando o gênio músico baiano, a “avançada tecnologia” que poderia nos ajudar nesse escopo. Lembro então que, no Brasil, terras indígenas são a categoria fundiária com menores índices de desmatamento e emissão de carbono.

Indo além, lembro ainda que nós, cientistas, ainda não inventamos uma tecnologia melhor do que uma árvore para capturar carbono da atmosfera, nem chegamos perto de entender completamente a complexidade das interações biológicas de uma floresta tropical. Em seu brilhante livro recém-lançado Arrabalde: em busca da Amazônia, o documentarista e escritor João Moreira Salles nos lembra também que “a episteme dos povos da floresta não atribui ao homem a centralidade na transformação do mundo”. Na cosmovisão de algumas tradições indígenas, como o Kwarup, homens e outros seres (animais, plantas, fungos etc.) alinham suas ações em interações complexas e de longo prazo. Dessa parceria nasce a floresta.

Por fim, me parecia oculto ̶ e ainda assim óbvio ̶ tudo o que aprendi no Xingu. Talvez haja algo disso na mensagem que o índio futurista do Caetano nos trouxe.

Artigo escrito para a coluna por Ari Araújo, médico radiologista, doutor em radiologia pela Universidade de São Paulo e, membro do Programa de Jovens Líderes da Academia Nacional de Medicina.

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Colunista Gustavo Meirelles

Gustavo Meirelles

É fundador, investidor e conselheiro de startups, principalmente na área da saúde. Médico radiologista, com especialização, doutorado e pós-doutorado no Brasil e no exterior. Tem experiência como executivo de grandes empresas de saúde, com MBA em gestão empresarial. Mais informações em: www.gustavomeirelles.com.

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