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Direito Digital

9 min de leitura

OCDE propõe taxar gigantes da economia digital

Quais impactos os brasileiros podem esperar caso o país se inspire nas propostas de tributação dos lucros de multinacionais da internet?

Luiz Roberto Peroba Barbosa e Ana Carolina Carpinetti

20 de Janeiro

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Artigo OCDE propõe taxar gigantes da economia digital

No último trimestre de 2019, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apresentou os primeiros passos para uma reforma global para tributação dos lucros de empresas da tecnologia que movimentam recebimentos sem grandes preocupações com custos.

No fim de 2020, a instituição retomou as discussões ao divulgar dois novos relatórios: no Pilar 1 (Abordagem Unificada), o objetivo foi estabelecer diretrizes para taxar lucros auferidos por essas empresas digitais; no Pilar 2 (Proposta Global), o combate à transferência de lucros para jurisdições com tributação reduzida ou inexistente foi o foco.

Paralelamente, há suposições sobre o alinhamento do Brasil e as medidas implementadas pela OCDE, uma vez que os relatórios produzidos pela entidade são utilizados como fundamento para alguns projetos de lei que pretendem originar novos tributos no país. Contudo, será que a aplicação das diretrizes discutidas na OCDE para tributação da economia digital faz sentido no contexto nacional?

Pilar 1: Abordagem Unificada

Em linhas gerais, este relatório propõe a criação de uma regra de “alocação de competência tributária” para permitir que os países cobrem impostos sobre a renda auferida por empresas que acessam seus mercados consumidores de maneira remota, ou seja, que não estão instaladas em seu território ou possuem atuação local efetiva.

Assim, a tributação aconteceria como quando residentes de um determinado país consomem, pela internet ou pela nuvem, bens digitais e serviços disponibilizados por uma empresa sediada em outro território, normalmente remunerada por meio de pagamentos realizados por meio de cartões de crédito internacionais. Com a alocação de competência tributária, uma regra autorizaria a cobrança, passando a integrar o texto dos tratados internacionais para evitar a dupla tributação pelo imposto sobre a renda.

Pilar 2: Proposta Global

Essa proposta pretende assegurar que a totalidade dos lucros das multinacionais esteja sujeita a uma tributação efetiva mínima, em patamar a ser fixado, independentemente do local, forma ou titularidade formal por meio dos quais esses lucros sejam recebidos.

Dessa forma, a proposição visa proteger a base tributável dos países em que tais empresas com atuação global estão sediadas com a criação de instrumentos jurídicos para desencorajar a alegada transferência de lucros para outras jurisdições com tributação reduzida ou inexistente e, consequentemente, mitigar os efeitos da oferta de incentivos fiscais abaixo de um determinado “piso internacional” de tributação mínima.

É importante lembrar que, em paralelo às medidas multilaterais indicadas acima, alguns países implementaram impostos sobre serviços digitais (digital services tax, ou DST) para possibilitar a tributação de parte desta receita até que se alcance um consenso global sobre as medidas a serem adotadas.

A (peculiar) situação brasileira

Sem detalhar vantagens e desvantagens das propostas – e mesmo que os debates estejam avançando –, ainda não há um consenso sobre as medidas a serem efetivamente implementadas. Nesse sentido, apesar de o Brasil ser considerado membro-chave da OCDE desde 2012, assinado um acordo de cooperação com o órgão em 2015 e solicitado oficialmente a sua adesão em 2017, o país ainda não é membro efetivo da organização. Isso significa que não há obrigatoriedade da internalização das propostas pela legislação interna local. Mas não é só isso.

Uma vez que seria importante a OCDE respeitar as realidades de cada país para a efetiva implementação de diretrizes para tributação digital, a adoção das medidas faz sentido ao considerarmos que há falta de recolhimento de tributos no local onde os serviços são consumidos e a riqueza é gerada. Contudo, ao analisarmos a situação concreta do país, essa premissa de que as multinacionais digitais não recolhem tributos aqui não é verdadeira.

O mercado nacional tem uma série de particularidades – como o controle cambial que exige celebração de contrato de câmbio para realização de remessas ao exterior, o uso reduzido de cartão de crédito internacional, a exigência de nota fiscal e o pagamento em real pelo consumidor local – que obrigam as maiores empresas do setor a se estabelecerem no território e prestar serviços diretamente ao cliente por meio de sua subsidiária brasileira.

Com isso, muitas delas já estão estabelecidas no país e, como todos os demais contribuintes nacionais, se sujeitam ao recolhimento do IRPJ, CSLL, PIS, COFINS e ISS/ICMS, de modo que as receitas geradas nas suas atividades são integralmente tributadas no país; portanto, já recolhem altos valores por ano aos cofres públicos.

Além disso, o Brasil adota o sistema de tributação da renda na fonte, além das CIDEs, o que já autoriza o governo a arrecadar parcela considerável dos valores remetidos ao exterior para remunerar as empresas que não têm presença física no país. Logo, mesmo que algumas empresas não tenham subsidiárias locais, os valores pagos pelos consumidores brasileiros estão sujeitos ao IRRF à alíquota de 15% ou 25% e ao IOF, que pode chegar a 6,38%, se o método de pagamento for cartão de crédito.

Com isso, não há que se falar em qualquer vantagem dessas empresas em relação aos demais setores do mercado, nem em ausência de tributação local dos resultados gerados com as atividades. Por esse motivo a criação de um DST local não se justifica.

Entretanto, apesar dessas diferenças evidentes entre o Brasil e outros países, atualmente temos, pelo menos, três projetos de lei que pretendem criar tributos incidentes sobre os serviços digitais, sob a justificativa de que essa seria uma recomendação da OCDE.

Projetos de lei em curso

O Projeto de Lei (“PL”) nº 2.358/2020, de iniciativa do deputado João Maia, pretende criar uma contribuição incidente a alíquotas progressivas de 1% a 5% sobre a receita bruta decorrente dos seguintes “serviços digitais”:

  • exibição de publicidade em plataforma digital para usuários localizados no Brasil;

  • disponibilização de plataforma digital que permite aos usuários interação entre si, para venda de mercadorias ou de prestação de serviços diretamente entre esses usuários, desde que um deles esteja localizado no Brasil; e

  • transmissão de dados de usuários localizados no Brasil coletados durante o uso de uma plataforma digital ou gerados por esses usuários. Os contribuintes seriam as pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil ou no exterior, que auferirem receita bruta no ano-calendário anterior superior ou equivalente a R$ 3 bilhões em suas operações mundiais ou superior a R$100 milhões, apenas no Brasil.

Já o PLP nº 131/2020, proposto pela senadora Zenaide Maia, pretende estabelecer uma contribuição “incidente sobre a receita bruta auferida pelas pessoas jurídicas com elevada receita que utilizam plataformas digitais”. A alíquota seria de 10,6% incidente sobre as receitas decorrentes:

  • da disponibilização de interface digital que permita aos usuários entrar em contato com outros usuários e interagir com vistas à entrega de mercadorias ou à prestação de serviços; e

  • da comercialização para anunciantes ou seus agentes, com o objetivo de colocar mensagens publicitárias direcionadas em uma interface digital com base em dados relativos ao usuário que a consulta. Os contribuintes seriam as empresas com receitas mensais acima de US$ 20 milhões ou equivalente em outra moeda por serviços prestados em todo o mundo, ou R$ 6,5 milhões no Brasil.

Temos ainda o PL nº 241/2020, proposto pelo deputado Danilo Forte, que visa instituir uma Contribuição Social Especial sobre Serviços Digitais incidente sobre a receita bruta de serviços digitais. Nesse caso, o fato gerador seria o auferimento de receita bruta decorrente da prestação dos serviços digitais, especialmente mediante:

  • exibição de publicidade em plataforma digital para usuários localizados no Brasil;

  • disponibilização de plataforma digital que permite a interação entre usuários com o objetivo de venda de mercadorias ou de prestação de serviços diretamente entre esses usuários, desde que pelo menos um deles esteja localizado no Brasil;

  • transmissão de dados gerados por usuários localizados no Brasil, ou deles coletados durante o uso de uma plataforma digital. O contribuinte seria a pessoa jurídica, domiciliada no Brasil ou no exterior, que tenha auferido, no ano-calendário anterior, receita bruta no Brasil, superior a R$ 100 milhões.

Reflexões essenciais

São várias as críticas que podemos tecer acerca da criação de um tributo específico para serviços digitais, como a adoção permanente de um mecanismo que a OCDE sugere apenas como uma solução transitória até que os mecanismos multilaterais sejam implementados.

Outro aspecto a ser considerado é o evidente aumento dos tributos sobre um setor que, como lemos anteriormente, está estabelecido e se sujeita à uma carga tributária já elevada no Brasil. Diferentemente da proposta internacional, os projetos em discussão preveem a incidência desse novo tributo digital também para as empresas brasileiras. Entretanto, essas mesmas corporações já estão sujeitas ao IRPJ e à CSLL, além de pagar o PIS, COFINS, ISS e/ou ICMS.

É necessário também avaliar a conveniência de um novo tributo num momento em que se discute no país a implementação de uma reforma tributária ampla e abrangente. Nesse caso, a instituição de um novo tributo específico para um setor da economia não faria sentido, já que as próprias bases de tributação poderão sofrer alterações em breve.

Há ainda os aspectos específicos dos projetos que podem trazer problemas práticos para aplicação do novo tributo. A primeira dificuldade está relacionada à superficialidade utilizada para definir os “serviços digitais” para fins de aplicação da taxa, pois não houve qualquer discussão prévia com as empresas de tecnologia para ter uma avaliação completa dos modelos de negócio e dos problemas existentes no setor.

Outra dificuldade decorre da intenção de cobrar eventual tributo de contribuintes estrangeiros, uma vez que não há jurisdição das autoridades fiscais brasileiras para a fiscalização e exigência de taxas no exterior. Nesse sentido, perguntas relacionadas à fiscalização do montante das receitas brutas correspondentes às campanhas publicitárias direcionadas ao Brasil ou sobre imposição de sanções em território estrangeiro permanecem sem resposta.

Nesse aspecto, novamente, é preciso atentarmos para as peculiaridades do Brasil, que se encontra numa posição diferente dos países europeus. Países como a França (onde foi criado um DST) fazem parte da União Europeia, onde existe um conjunto de regras que obrigam a assistência mútua na cobrança de tributos, facilitando a adoção de mecanismos para a aplicação da lei estrangeira em países da comunidade e execução do crédito tributário.

A implementação de um DST pode ainda provocar a dupla tributação das receitas auferidas pelas empresas, uma vez que esse novo tributo não está abrangido pelos acordos atualmente existentes, o que pode até mesmo inviabilizar certos negócios digitais no país. De quebra, esta adoção poderá despertar uma onda de discussões judiciais sobre os vários aspectos já apontados.

Por fim, vale destacar que a adoção de medida unilaterais pelo Brasil pode ser objeto de forte oposição pelos Estados Unidos e União Europeia, o que pode dificultar o ingresso do país na OCDE, afinal, a organização tem discutido medidas multilaterais e muito mais elaboradas do que a simples criação de um “digital tax”. O multilateralismo e a cooperação internacional são exigências atuais da “governança tributária internacional”, na qual medidas unilaterais com fito arrecadatório não possuem espaço.

Vemos que o Brasil não enfrenta os mesmos problemas que outras jurisdições para tributar a renda auferida por empresas da economia digital. Por isso, copiar legislações estrangeiras representaria um retrocesso do governo brasileiro.

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Autoria

Luiz Roberto Peroba Barbosa e Ana Carolina Carpinetti

Luiz Roberto Peroba Barbosa é sócio de tributário de Pinheiro Neto Advogados. Ana Carolina Carpinetti é sócia de tributário de Pinheiro Neto Advogados.

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